(Na minha cidade de Santarém em 4/9/16)
A Cadelinha do 5º
Andar do meu prédio podia ser o titulo deste texto porque a ela se somam recordações de uma vida, não da minha, mas da minha vizinha que faleceu.
Na vida, as recordações somam-se aos anos e na manhã deste mês
de Outubro, à mesa do meu Café, lembrei-me da vizinha do 5º Dto.
Num dia, igual a tantos outros, quando saía para tomar o meu
café matinal com a meia torradinha barrada em azeite de um lagar próximo da
minha aldeia, lá estava, colado ao vidro da porta do prédio, aquele papel das
Agências Funerárias com a cruz negra, bem visível, a anunciar a morte de um dos
moradores.
Era a minha vizinha do 5º Dto com quem me cruzava frequentemente
quando ela levava pela trela, para o passeio higiénico, a cadelinha que mais
parecia uma bolinha de carne em cima de quatro patinhas.
Diga-se, por ser verdade, ela levava-a para todo o lado, eram
inseparáveis, nunca vi uma sem a outra.
- «Os meus sentimentos…» disse eu ao viúvo na primeira oportunidade.
«É
a vida…» acrescentei sem jeito nem imaginação.
- «Obrigado, meu vizinho, felizmente foi tão rápido que nem chegámos
a saber do que morreu… fechou os olhos simplesmente….» – disse ele.
Era assim, a minha vizinha, despachada a viver, despachada a
morrer, um dia cheia de vida no outro sem ela. Às vezes, encontrava-a no Café
que ficava junto da mercearia da nossa rua e que em tempos fora dela. Meia
sentada na cadeira, como se estivesse sempre preste a levantar-se, de partida,
pouco habituada às pausas para descanso, com a cadelinha deitada aos seus pés
como se fosse um acrescento seu.
Não era pessoa para grandes conversas, quando falava era em
monólogos, bem sonantes, sem cuidar de quem a escutava, eram desabafos que não
aceitavam contraditório porque quem sabia da vida era ela, mulher de trabalho,
que tinha criado e educado uma filha e servido não sei quantos senhores e
senhoras por esse mundo fora: País de Gales, Londres, EUA, trabalhando a sério,
no duro, cumprindo ordens, satisfazendo e aturando caprichos de gente rica, em
suma, dobrando a espinha, e a alma.
- «…Não era como agora em que os jovens só querem é gozar».
Talvez por isso, aos oitenta anos, o orgulho de uma vida de
trabalho não chegou para lhe adoçar a velhice tantas são as palavras de crítica
azeda com que se refere ao presente.
A minha vizinha do 5º Dtº morreu em paz, tudo o que em
consciência devia ter feito na vida ela fez e por isso, quando chegou a hora,
nem um ai ou um simples adeus, simplesmente fechou os olhos, a missão estava
cumprida, tinha chegado ao fim.
Vi o meu vizinho uns dias mais tarde com a cadelinha pela trela
e os meus olhos abriram-se de espanto. O animal estava pela metade.
- «Então, vizinho, que aconteceu à cadelinha que nem parece a
mesma?»
- «Ia morrendo de desgosto, meu vizinho, durante uma semana
recusou-se a ingerir fosse o que fosse para além de água. Tive que a levar ao
veterinário… agora já está melhorzinha.»
Não fora o apoio do viúvo em carinho e a intervenção do médico
veterinário e a “Princesa”, não teria sobrevivido à sua dona, tal a dedicação
que lhe devotava.
Com toda a sinceridade, não nutro pelos animais domésticos o
mesmo “respeito” e “admiração” que sinto pelos animais selvagens, por questões
de origem, proveniência…
Uns, são o resultado do processo evolutivo: estão cá porque
mereceram cá estar, são vencedores, campeões, enfrentaram os desafios da
natureza e resistiram, adapt aram-se,
as suas estratégias de sobrevivência mostraram-se ganhadoras, muitos deles não
sabemos até quando… também por nossa causa.
Os outros… bem, os outros, são o resultado de negócios
vantajosos recíprocos, digamos assim. O homem precisou deles, serviram as
nossas necessidades, mais tarde os nossos caprichos, por isso, são da nossa
responsabilidade, não da responsabilidade da natureza.
Mas aqui abro duas
excepções:
- A primeira, para o cavalo. Há 5.500 anos entrou na nossa
vida e revolucionou-a por completo tornando o mundo mais pequeno.
Para o bem e para o mal aproximou-nos uns dos outros, a história
ganhou outra dinâmica, ele foi o avião desses tempos no que respeita a encurtar
distâncias, sem ele o nosso percurso teria sido outro.
Há mais de 30.000 anos as suas imagens preencheram as paredes
das grutas no tempo do Homem do Paleolítico, no Sul da Europa, fazendo parte do
seu imaginário.
As suas formas esbeltas, harmoniosas, as crinas ondulando ao
vento em galopes libertadores seduziram os nossos antepassados.
É certo que também o caçavam para a alimentação mas o grau
de participação na dieta dos nossos antepassados não justificava tantas
reproduções de que foi alvo pelos artistas de então, o que significa que já por
essa época gostávamos mais de os ver do que de os comer…
- A segunda excepção é recente, conheci-a agora. É a “Princesa”,
actual herdeira de um lobo que há mais de 40.000 anos escolheu um acampamento
humano para futuro da sua alcateia de tal forma que o percurso de uma linhagem
de lobos se fundiu com os humanos numa relação de amor, cumplicidade,
companheirismo, em que a cadelinha do 5º andar, que tive a sorte de conhecer,
se dispôs a morrer incapaz de suportar a dor da saudade da sua amiga
inseparável.
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