(Na minha cidade de Santarém em 4/12/16)
Ao calor de uma fogueira...
O controle do fogo, oriundo dos céus, foi a primeira grande
inovação técnica do homem há cerca de 550.000 anos, tão importante que a
evolução da nossa espécie não teria sido possível sem esse enorme avanço que
lhe abriu as portas do futuro e lhe permitiu acreditar nas suas capacidades.
Sem o fogo, as noites dos nossos antepassados teriam continuado
a ser de pesadelo, à mercê das feras, primeiro empoleirados nas árvores, mais
tarde protegidos por arbustos espinhosos, saliências rochosas e muito
dificilmente em grutas escuras e frias.
Por esta altura éramos muito poucos, algumas centenas de milhar
de indivíduos em todo o mundo, extraordinariamente dispersos e com uma duração
média de vida que não ultrapassaria os 20 ou 25 anos.
À volta de uma fogueira a vida social estruturou-se, os laços
familiares reforçaram-se e o que seria o dia de amanhã ganhou mais
consistência.
Domesticar o fogo terá sido, com certeza, um objectivo
perseguido com grande determinação, muitas frustrações, dissabores e acidentes
diversos à mistura.
Qualquer um de nós que tenha um fogão de sala ou uma lareira
deveria ter um pensamento para esses nossos antepassados quando, nas noites de
Inverno, acende a lareira recorrendo, com toda a facilidade, às acendalhas que
comprou no supermercado e mesmo hoje, no conforto das nossas casas é sentido
como o crepitar das chamas da fogueira nos transmite bem-estar, tranqui lidade, paz e intimidade.
Os restos mais antigos do que poderia ser uma lareira foram
descobertos na gruta da Escale, em França, datados de há 750.000 anos, mas
vestígios de lareiras realmente estruturados que sem qualquer espécie de
restrições podem ser atribuídos ao homem, só a partir de há 500.000 anos na
Europa ou ainda na Ásia e mais tarde nas regiões tropicais de África onde o
frio causava menos problemas.
O homem que primeiro utilizou o fogo nós o denominamos de
Herectus, e essa utilização foi certamente muito anterior à descoberta da
técnica para o produzir. Por isso, ele se transportava e... roubava.
Primeiramente, seria simplesmente apanhado durante um acidente
natural, um raio ou um vulcão e depois transportado, mantido e vigiado e não
admira nada que se tivessem registado confrontos violentos entre quem o tinha,
para o defender, e de quem o procurava, para o roubar.
Estas lareiras são caracterizadas pela presença de uma camada de
cinzas, muitas vezes circunscrita por um muro baixo de pedras onde se
encontraram fragmentos de ossos queimados que revelam que os nossos
antepassados aprenderam a utilizar o fogo não só para se iluminarem, aquecer e
defender das feras, como também para confeccionar os alimentos.
O domínio da técnica do fogo com consequências decisivas no
processo evolutivo da nossa espécie é contemporâneo do aumento evidente do volume
do cérebro que, por sua vez, acompanhou a evolução constante das técnicas
utilizadas na confecção dos utensílios de pedra cada vez mais numerosos,
eficazes e também mais elegantes, facto que pode traduzir um desejo novo de
procura estética com uma nova cultura que se sobrepõe à simples técnica.
Aprender a fazer fogo resultou da observação ao perceberem que
ele aumentava pelo aquecimento de galhos ou folhas secas o que lhes permitiu
concluir que a chama poderia ser iniciada com temperaturas elevadas.
Desta forma, descobriram que o atrito entre dois paus de madeira
aumentava a temperatura e produzia a chama que depois poderia ser activada com
a ajuda de pequeninas palhas secas e um ligeiro sopro.
Mas eles observaram também que o choque entre duas pedras
produzia faíscas e que se colocassem galhos ou folhas secas junto dessas
faíscas conseguiam obter fogo.
Esta técnica veio até aos nossos dias com os isqueiros de
pederneira de que ainda me lembro muito bem nas mãos dos velhos fumadores na
aldeia dos meus avós.
Os nossos antepassados tinham tendência para adorarem tudo de
que dependiam as suas vidas e o fogo, pela sua importância, era considerado
sagrado e tributavam-lhe danças em sua homenagem.
Mais tarde, ao longo da história, os homens viriam a dançar por
muitas outras coisas… mas a primeira dança, a que abriu caminho a todas as
outras foi, sem dúvida, a do fogo considerado símbolo divino da vida.
Foram muitas as alterações que o domínio do fogo, e
principalmente a sua utilização na confecção dos alimentos, trouxe para a
evolução da nossa espécie:
- Ao deixar de comer carne crua sofremos mudanças ao nível dos
maxilares e dos dentes, da forma do rosto e do aparelho digestivo que, por sua
vez, provocaram alterações no aparelho vocal e o homem que era Herectus passou
a ser Sapiens Sapiens:
- As cavernas passaram a ser iluminadas e podiam aquecer-se nas
noites frias tornando a vida mais fácil e agradável;
- O fogo facilitou a vida em grupo e melhorou as relações de
convivência das primeiras comunidades;
- Como conviviam mais, passaram da fase dos gestos à fase da
comunicação através de sons articulados e de palavras desenvolvendo a própria
linguagem;
- Os instrumentos utilizados na caça e na pesca foram
aperfeiçoados, começou a trabalhar a pontas das setas, endireitou as armas de
arremesso, fabricou instrumentos para a guerra e começou a caçar mais e
variados animais;
-Defendeu-se melhor das feras que os cercava diminuindo a
mortalidade precoce e aumentando, por conseguinte, os níveis populacionais;
- Melhor alimentado, o organismo tornou-se mais forte no combate
às doenças e por isso viveu mais anos.
Não mais qualquer outra técnica foi tão decisiva para o destino
da humanidade como aquela que nos permitiu produzir e controlar o fogo porque,
sem ela, pelo menos esta humanidade não existiria.
A sensação de bem-estar, conforto e intimidade que eu recolhia
junto de um fogo, nas noites de inverno, sentado à chaminé, naquelas pequenas
cadeiras de verga, presença indispensável em todas as casas nas aldeias do
interior do nosso país deve, com certeza, ser comparável à dos nossos ante –
passados aninhando-se à volta de uma fogueira.
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