terça-feira, fevereiro 21, 2017

Mar me quer
(Mia Couto)

Episódio Nº 16













Ele acenou afirmativamente com a cabeça. Era por saber isso que ele estava ali, sentado a meu lado. Então, ele me perguntou:

- Vim aqui lhe pedir uma coisa. Você sabe onde fica o Fundo da China?

- Esse fundão, lá no meio do mar?

- Eu quero que você vá lá, cada semana vá lá. E leve comida e água de beber. Deixe isso no fundo. Faça isso da minha parte. Promete?

- Prometo.

E explicou-me: única razão que lhe dava força para viver era essa lembrança. Nas funduras do Fundo da China se extinguira aquela que ele amara, aquela para que tivera olhos.

- Sabe? Esse anzol todo que abençoo. Tudo é mentira. Só finjo dar as boas sortes para que essa isca, essas coisas que ajunto nos anzóis, desçam lá nos fundos e não voltem.

- E as coisas que o senhor prende no anzol?

- São prendas que destino na falecida. É para ela. Tudo aquilo é para ela. São minhas prendas.


                             
                            Sexto Capítulo




Nessa tarde, eu me varandeava, olhando o oceano. Não é que eu olhasse para aquele todo azul. O mar levava os meus sonhos a passear. E eu ficava cego para lembranças, sempre recém –nascente.  Assim, no velho degrau da minha varanda, não estava calado – era eu o próprio silêncio, embalado a Índico.

De repente, o piar de uma gaivota me alertou. Meus nervos ficaram em arco, disparei que nem flecha. A pedra saiu-me da mão com raiva.

- Ei, Perpétuo! Quase me acertava.

Era a vizinha. Dona Luarmina sempre quisera o motivo de eu me dedicar na matança das gaivotas. Coitados, dizia ela, são pássaros cheios de brancura, enfeitando o céu de sonhos marinhos. Mas porquê, Zeca, por que essa raiva? Sendo um homem de abarrotar coração, como podia empreender tamanha maldade nos inocentes bichos?

- Não posso explicar.

- E porquê?

 - Porque é um segredo, Dona Luarmina.

- Pensei que só mulher escondia segredo.

Sorri. Aquilo era rasteira para fazer tropeçar machices. Um segredo o que é? Um segredo é uma laranja de um só gomo. A gente come aquele gomo e fica a casca forrando o vazio.

Eu já havia experimentado aquele amargo de segurar um fruto sem dentro, cascas areiando entre os dedos.

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