Mar me Quer
A
canoa se fez ao mar, um cisco entrou nos
olhos de Deus.
(Dito
do avô Celestino)
Episódio nº 9
Não sei porque Dona Luarmina chorou, quando lhe contei a história
do velho. Se foi ela que me pediu! Eu lhe tinha avisado da tristeza dessa memória,
mas ela insistiu. Foi só por isso que desatei as lembranças.
Meu pai se chamava Agualberto Salvo – Erro. Em tudo ele seria
pessoa. Só um senão atrapalhava sua humanidade. meu velho tinha olhos de tubarão.
Não que fossem olhos de nascença.
Aconteceu-se quando, certa vez, ele saltou do barco para salvar
sua amada. Era uma moça muito nova que ele encontrara em outras terras. Trazia-a
sempre no barco, em companhia das pescas.
Fim do dia, antes de trazer o peixe à praia, meu pai encaminhava o
barco para alem do horizonte para ir deixar a moça. Quem seria tal rapariga, de
onde era? Mistério que ficou e há-de ficar com Agualberto.
Nessa tarde, meu pai pescava próximo da nossa praia. O tempo
estava encabrinhado. Eu apurava as vistas, tentando espreitar a figura dessa
que acompanhava meu pai. Minha mãe virava as costas ao oceano.
- Já viu o pai, lá?
Minha mãe nada respondia. Estava ocupada nas lenhas, no fogo, no
jantar. Fiquei assim na berma da praia, olhando o concho alternando-se com o
mar, visão e desaparência. Até que, de repente, notei um vulto tombando no mar.
Era a moça.
Meu pai, em aflição, saltou em socorro dela. Mergulhou nas funduras
das águas e ficou dentro do mar mais tempo que um peito autoriza.
Saíram os restantes barcos, em salvação. Contaram-se
segundos, minutos, lágrimas, suspiros. Só ao fim do dia meu velho reapareceu na
superfície. Já ninguém esperava que ele ressurgisse. Mas para espantação e reza
meu pai golfinhou-se entre as ondas e gritou como se o céu inteiro lhe entrasse
no peito. O povo chamava:
- Está vivo, está
vivo!
Os pescadores correram a recolher o ressurgido companheiro. Festejaram,
dançando e cantando enquanto os barcos se faziam à praia. As mulheres ululavam
em manifestação de satisfação.
Minha mãe avançou e se perfilou perante o homem. Que se passaria
por detrás daquela aparência dela? Afinal, essa mulher que meu pai tentara
salvar era uma outra, rival e ilegítima.
Mesmo assim ela enfrentou meu velho. Seus olhos subiram do chão até
se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou, tapando o rosto com as mãos. Os
restantes se aproximaram de meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria.
- Os olhos dele!
Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia
olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do mar:
azuis, de transparência marinha.
Sua humanidade estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo
demasiado tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto
tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos.
A partir desse dia, meu pai, se adentrou em si mesmo, toda a hora
sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes, vindas de longe
para espreitar de longe o preto de olhos de cor do mar.
Minha mãe, certa vez, me afastou por um braço, e sussurrou uma angústia:
- Essa mulher, outra, será mesmo que morreu de vez?
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