e a Esperança
Se eu fosse remetido para a condição de “sem abrigo” não morreria de fome ou de frio. Morreria de desgosto por não ter uma casa, um espaço meu, pequeno ou grande, simples ou luxuoso, mas um espaço meu em que me sentisse rei.
Em princípios 1977, eu não era um “sem abrigo”, tinha regressado ao meu trabalho de Funcionário do Estado e reposto a minha dignidade nesse aspecto que, bem vistas as coisas, é de todos o mais importante, depois da segurança pessoal das nossas vidas contra a possibilidade de ser vítima de comportamentos arbitrários das autoridades que senti antes de regressar ao meu país, como refugiado da colónia de Moçambique.
Vivia, então, numa situação de favor em casa de uns parentes, em quarto interior que, de tão pequeno, o aparelho de TV, ao tempo ainda preto e branco, tinha de ficar ao fundo, aos pés da cama por não ter espaço para mais.
Não tinha recursos financeiros e o meu ordenado dava apenas para uma pequena renda de uma casa que, na altura, não existiam.
A revolução dos Cravos do 25 de Abril, pouco depois seguida da avalanche de vagas de retornados, foram uma surpresa, o país não estava à espera nem preparado, exaurido por uma guerra que não tinha fim.
Não havia casas, simplesmente, não havia para abrigar as centenas de milhar de famílias chegadas em cima umas das outras.
Eu, finalmente, por intermédio de um conhecido, arranjei uma que me foi disponibilizada por ele, que entretanto, ia para Lisboa mas o preço estava nos limites do meu ordenado, ainda me lembro, cinco mil escudos mensais e o intermediário queria ainda um cheque de 50 contos para ele...
Não dormi por causa da raiva que senti e a minha cabeça não parava a tentar forjar uma solução que surgiu quando, pesquisando, soube da existencia de um Programa da Cooperativas de Habitação Económica.
- Informei-me... e se eu, em vez de uma casa, arranjasse dezenas, centenas delas, quem sabe?...
Os governos de então faziam o que podiam para ajudar as pessoas, e eu, que como Funcionário Público trabalhava na área social e sabia disso.
As Cooperativas de Habitação Económica, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso, complexo mas... possível.
As Cooperativas de Habitação Económica, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso, complexo mas... possível.
Tanto bastou para que, no outro dia, impulsionado pela raiva e a esperança saísse de manhã direito à Câmara Municipal de Santarém, pedir uma audiência ao Presidente.
A partir daqui , o desespero que nunca me abandonou, deu um espaço à esperança e à determinação: nada ficaria por fazer, prometi a mim próprio que "levaria tudo à frente...", uma espécie de esperança raivosa, uma vingança contra o egoísmo dos outros, que me fez ranger os dentes e pôr em cada gesto e palavras, toda a convicção e força interior para que ninguém tivesse dúvidas do objectivo que queria alcançar.
A história do percurso da minha Cooperativa de Habitação Económica “Lar Sacalabitano, levou vários anos e foi o mais duro teste à minha persistência e teimosia que se prestou a um folhetim que terminou bem no dia em que eu próprio entreguei 96 chaves de outras tantas casas a outras tantas famílias, que não a minha, porque ao fim de quase 10 anos já tinha arrendado uma casa que comprei à minha sogra que a obteve por morte do marido.
Mas o processo continuou e das 96 passaram às centenas , mais de 400 , que viriam em anos seguintes, numa 2ª e 3ª fases, chegando às centenas, mais de 400 apartamentos, numa zona nobre da cidade de Santarém, Av. Bernardo Santareno, do lado direito de quem desce, antes de chegar ao edifício do novo Hospital que então e ainda não existia.
Foi o maior programa de Habitação Social do Distrito de Santarém e talvez de todo o interior do país e que teve contra si, primeiro o cept icismo, depois, a inveja, a intriga, as armadilhas, um pouqui nho de tudo mas que começou e acabou sem interrupções, sem escândalos, nem falências, porque, como terá dito um técnico do Fundo de Fomento de Habitação que acompanhou todo o processo, teve à sua frente o Dr. Paula de Matos.
Reconheço o meu orgulho e vaidade quando passo de carro na avenida, ao longo daquele bairro, espaçoso, com zonas para as crianças e espaço para lojas que lhes dão vida.
O que esse técnico e todos os técnicos nunca souberam, é que foi tudo fruto de uma noite de raiva e esperança de quem tendo saído de Moçambique com a roupa que tinha vestida para não levantar suspeitas na fronteira, abandonando uma casa acabada de mobilar numa avenida à beira - mar se viu na contingência de à noite ver televisão com o aparelho aos pés da cama por não haver espaço para mais...
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