terça-feira, fevereiro 10, 2015

Era melhor que tivesse mandado me matar.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 170




















A carícia da viração na água do rio, na copa das árvores, nos cabelos de Bernarda. Coroca arrazoava:

- Quem não tem entendimento não deve escolher ofício de puta, que não é ofício singelo, é bem mais dificultoso. Ela pensa que basta catar piolho, arreganhar os dentes se rindo, botar cheiro nas partes, tá muito errada.

 Mulher da vida é igual a freira: quando entra pro convento, larga tudo. Pai e mãe, irmã e irmão, o nome verdadeiro e o direito de emprenhar e de parir.

 Só que freira vira santa e vai pro céu sentar na mão de Deus e a gente não passa nunca de puta, condenada sem salvação.

Fitou o horizonte além do rio e das colinas, a luz intensa doeu- he os olhos:
- Gastei as vistas de tanto ver menino cagado e remelento botando ranho pelo nariz, chorando pelos cantos nas casas de rapariga.

Filho de rapariga é a raça mais desamparada que existe. É preciso ser zureta, que nem ela, para pensar que puta pode ter luxo de filho, pode botar cria no mundo. Coisa mais lastimosa é mulher-dama fazendo a vida com menino pequeno agarrado na barra da saia.

Sem interromper a litania, suspendeu a costura, examinou os consertos nos rasgões da blusa descolorida:

- Se ela não sabia como fazer para não pegar menino, por que não perguntou aos de maior? Cadê que eu nunca peguei, e estou na vida faz um ror de tempo: os dedos das duas mãos e dos dois pés não chegam para contar os anos que levo nessa lida.

Não é de hoje que me chamam de Coroca.

Silenciou por um instante, indecisa. As memórias do fadário eram privilégio seu, exclusivo. Mas se ela não acudisse em socorro de Bernarda, a ignorante iria arrastar a cruz de um filho vida afora.

 Bernarda podia ser sua neta. - Eu era moderninha quando Mãe me ensinou pro mode não emprenhar do coronel Ilídio.

Tava amigada com o Coronel, de casa posta. Foi ele quem me acudiu quando Olavo, depois de me tirar os tampos, morreu cuspindo sangue, fraco do peito.

 O Coronel botou casa pra mim, sortida de um tudo e mais o que eu pedisse. Bastava eu desejar, ele mandava dar em dobro, rabicho de bode velho. Eu tava de grande, Mãe não se cansava de dizer. Bastava não pegar filho que isso dona Marcolina não ia tolerar.

Por mais de sete anos fui senhora-dona, ou ela pensa que já nasci mulher perdida? Só caí na vida quando o Coronel faltou e dona Marcolina mandou me dar uma surra e correr comigo de Macuco.

Foi a primeira ordem dela pros cabras, depois de botar luto de viúva e tomar conta da fazenda. Afastou a vista da costura:

- Era melhor que tivesse mandado me matar.

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