sexta-feira, maio 09, 2008

O Velho Testamento


O VELHO TESTAMENTO
(Ritchar Dawkins)



Se algum realizador cinematográfico quisesse contar a história do homem como espécie animal poderia, com toda a propriedade, intitulá-lo “Nascidos para Acreditar”.

Se as crianças, filhas dos nossos antepassados, tivessem tido a necessidade de aprenderem a sobreviver à custa da sua própria experiência, muito naturalmente, a percentagem dos que passariam à idade adulta não seria suficiente para assegurar a continuidade da espécie.

Acreditar obedientemente, sem contestar, nos conselhos dos pais, dos avós, dos chefes, das pessoas mais velhas, foi a necessidade sentida, a palavra de ordem para a qual o cérebro humano desenvolveu uma predisposição psicológica acentuada nas crianças imediatamente a partir do seu nascimento.

Nunca animal nenhum tinha necessitado tanto das experiências de vida dos seus progenitores porque também nenhum outro tinha nascido tão frágil e dependente por um período tão longo da sua vida.

E a evolução parece que só teve esse caminho: aquelas crianças tinham que acreditar e ser obedientes.

A evolução, através da selecção natural, não tem soluções pré programadas, na maioria dos casos até nem as tem, a maioria das suas tentativas são becos sem saída que terminam na extinção.

No caso concreto do homem a aposta foi num cérebro superior mas condicionada a um período inicial em que “a ordem” foi “não penses, (não arrisques) faz o que te digo” se queres ter mais possibilidades de sobreviver.

Esta “terrível”necessidade de acreditar que, provavelmente, pode ter sido decisiva para que eu possa estar hoje aqui a escrever este texto no teclado do meu computador, é precisamente a mesma que explica que um número assustadoramente elevado de pessoas continue a seguir à risca os seus livros sagrados.

De acordo com uma sondagem da Gallup, cerca de 50% dos eleitores americanos fazem parte dessas pessoas (o que não deixa de ser assustador…) não obstante muitos teólogos afirmarem que já não seguem à risca o livro do Génesis.

Comece-se, então, este livro pela conhecida história da Arca de Noé que sendo encantadora tem, no entanto, uma moral perfeitamente aterradora que revela a consideração que Deus tinha pelos humanos pois, à excepção de uma única família, afogou-os a todos, incluindo crianças, e os restantes animais.

Na destruição de Sodoma e Gomorra o equivalente a Noé escolhido para ser salvo foi Lot, sobrinho de Abraão, porque era incomparavelmente justo.

Dois anjos foram enviados a Sodoma para avisar Lot que saísse da cidade antes desta ser assolada pelo enxofre.

Hospitaleiro, Lot, recebeu os anjos em sua casa, após o que todos os homens de Sodoma se juntaram em redor e exigiram que ele lhes entregasse os anjos para (que outra coisa haveria de ser?) os sodomizarem.

“Onde estão os homens que entraram na tua casa esta noite. Trá-los cá para fora para nós os conhecermos” (Génesis 19:5)

Sim, “conhecer” tem o habitual significado eufemístico da versão autorizada da Bíblia, o que, no contexto, é bastante curioso.

A galhardia com que Lot se recusa a ceder a tal exigência sugere que Deus terá acertado ao elegê-lo como o único homem bom de Sodoma.

Mas os termos da sua recusa irá manchar essa aura de Lot:

-“Suplico-vos, meus irmãos, não cometais semelhante maldade. Eu tenho duas filhas ainda virgens. Eu vo-las trarei. Farei delas o que vos aprouver, mas não façais mal a esses homens porque vieram acolher-se à sombra do meu teto” (Génesis 19:7-8)

Independentemente de outros significados que esta história possa encerrar, ela diz-nos seguramente alguma coisa acerca do respeito pelas mulheres nesta cultura intensamente religiosa.

O que acabou por acontecer foi que a oferta, por troca, da virgindade das filhas se mostrou desnecessária, já que os anjos conseguiram repelir os meliantes cegando-os miraculosamente. Depois, avisaram Lot para que fugisse de imediato com a sua família e os seus animais porque a cidade estava prestes a ser destruída.

Toda a gente escapou excepto a infeliz esposa, a quem o Senhor transformou numa estátua se sal porque cometeu o crime - relativamente brando, dir-se-ia - de olhar para trás para mirar o aparato pirotécnico.

As duas filhas de Lot voltam a aparecer por breves instantes na história porque depois da mãe ter sido transformada numa estátua de sal ficaram a viver com o pai numa caverna, no cimo de um monte.

Famintas de companhia masculina, decidiram embriagar o pai e deitar-se com ele. Lot estava longe de se poder aperceber de quando a filha mais velha se deitou na cama com ele ou de quando se levantou mas não estava suficientemente embriagado para a engravidar.

Na noite seguinte as duas filhas concordaram que seria a vez da mais nova e repetiram a cena da embriaguês que não impediu, novamente, que a filha ficasse grávida.

Se esta família disfuncional era o melhor que Sodoma tinha para oferecer quanto a preceitos morais, então talvez Deus desperte alguma solidariedade quanto ao seu criterioso enxofre.

Num outro episódio, capítulo 19 do Livro dos Juízes, vemos uma história semelhante à de Lot.

Um levita (sacerdote) viajava com a sua concubina em Guibeá. Passaram a noite em casa de um velho hospitaleiro mas quando ceavam, os homens da cidade chegaram, bateram à porta exigindo que o velho lhes entregasse o seu convidado “a fim de o conhecerem” e o velho com uma argumentação idêntica à de Lot, disse:

“ Não, meus irmãos! Eu vo-lo peço por favor, não pratiqueis semelhante mal! Agora que este homem entrou na minha casa, não pratiqueis tal desonra! Eis a minha filha que está virgem e a concubina dele; vou fazê-las sair, abusai delas, fazei-lhes o que vos agradar! A este homem, porém, não lhe façais uma infâmia desta natureza”

Uma vez mais transparece com toda a clareza o ódio e aversão às mulheres com a expressão sinistra de “abusai delas”.

O desfecho desta história não foi feliz:

O levita entregou a concubina à multidão que a violou consecutivamente durante toda a noite. “Eles conheceram-na e satisfizeram com ela a sua luxúria durante toda a noite e só a deixaram livre ao amanhecer. Ao raiar da aurora, a mulher caiu por terra à porta da casa onde estava o seu marido até vir o dia” (Juízes 19: 25-6).

De manhã, o levita, encontrando a concubina prostrada à porta da casa disse: - num tom que hoje podemos considerar de grande insensibilidade – “Levanta-te e vamos”. Mas ela não se mexeu, estava morta. Então ele “pegou num cutelo e agarrando na sua concubina, esquartejou-a membro a membro em doze pedaços, enviando-os depois a todas tribos de Israel”

Na sequência deste episódio, e por vingança, segue-se uma guerra onde mais de sessenta mil homens foram mortos.

O tio de Lot, Abraão, foi o pai fundador das três grandes religiões monoteístas e o seu estatuto de patriarca confere-lhe uma importância, enquanto modelo de comportamento, apenas ligeiramente inferior à do próprio Deus.

No entanto, que moralista moderno iria querer segui-lo?

Na sua longa vida Abraão foi para o Egipto onde, na companhia da sua mulher Sara, enfrentou um período de escassez e fome.

Apercebeu-se então, de que uma mulher assim bela seria cobiçada pelos egípcios e a sua própria vida, enquanto marido, poderia estar em perigo.

Por esta razão, decidiu fazê-la passar por irmã e é nesta qualidade que ela foi levada ao harém do faraó sob cuja protecção Abraão ficou rico (à custa da mulher… já se vê) mas Deus desaprovou tal aconchego e mandou pragas sobre o faraó e a sua casa (e por que não sobre Abraão?).

Compreensivelmente magoado com o agravo, o faraó exigiu saber por que motivo Abraão não lhe tinha dito que Sara era sua mulher e expulsou-os do Egipto. (Génesis 12:18-19)

Mais tarde, o casal volta a cometer a mesma proeza desta vez com Amibelec, rei de Guerar, induzido a casar com Sara julgando, também, que ela era irmã de Abraão e não sua mulher. (Génesis 20:2-5).

Mas se estes episódios são desagradáveis na história de Abraão eles são pecados menores quando comparados com a famigerada história do sacrifício do seu filho muito desejado Isaac por ordem de Deus.

Construído o altar e amarrado Isaac sobre a lenha já estava Abraão de cutelo em punho pronto para a matança quando lhe apareceu um anjo e o mandou parar porque Deus, afinal, estava só a brincar, submetendo Abraão à tentação e testando-lhe a fé.

Pelos padrões da moralidade moderna esta história vergonhosa é, simultaneamente, um exemplo de abuso de menores, de tratamento tirânico entre duas relações de poder assimétrico, e o primeiro caso de que há registo da defesa utilizada em Nuremberga:”Estava apenas a cumprir ordens”.

Mesmo assim, esta lenda é um dos grandes mitos fundadores das três religiões monoteístas.

Thomas Jefferson, 3º Presidente dos EUA, estadista, filósofo político, arquitecto, arqueólogo e um espírito que representava o Iluminismo emitiu a opinião de que o “Deus de Moisés e de Abraão é um ser de carácter terrífico – cruel, vingativo, caprichoso e injusto”.

Há teólogos modernos que dirão que a história do sacrifício de Isaac por Abraão não deve ser entendida literalmente mas esse não é o facto relevante.

Relevante, é sim, haver muitíssimas pessoas nos dias de hoje, repetimos os resultados das sondagens em que metade dos americanos que votam seguem à risca os textos bíblicos e alguns deles detêm grande poder político sobre nós, especialmente nos EUA e no mundo islâmico.

A história bíblica da destruição de Jericó por Josué, tal como a invasão da Terra Prometida em geral, em nada se distingue, do ponto de vista moral, da invasão da Polónia por Hitler ou do massacre dos Curdos e dos Árabes das zonas pantanosas do Iraque por Sadam Hussein

A Bíblia pode até ser uma empolgante e poética obra de ficção mas não é o tipo de livros que se deva dar a uma criança para lhe moldar a moral.

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