Lembranças da Guerra
- QUANDO O FEITIÇO SE VIRA CONTRA O FEITICEIRO...
Viver toda uma vida, ainda que apenas a da juventude, na cidade de Lisboa, na paisagem serena de uma aldeia da Beira - Baixa, ou numa pequena cidade da Estremadura do nosso Portugal, como Tomar, Abrantes ou Santarém e ser autenticamente despejado, ao fim de nove dias de viajem no paquete Vera Cruz, nas matas luxuriantes do norte de Angola, constituiu, para nós, militares da Companhia de Caçadores 388 e para mim em concreto, um contraste e choque totais.
Estávamos a cumprir as ordens de Salazar:
“PARA ANGOLA, DEPRESSA E EM FORÇA”
Eu já tinha estado em Angola, numa visita de estudo, em Setembro de 1960, mas não deu para sentir África: os aviões, os hotéis, uma ou outra estrada são mais ou menos iguais em todo o lado e a paisagem, por mais diferente e exótica que seja apenas nos enche o olhar.
Chegamos de noite ao Úcua e fomos recebidos pela tropa que íamos render, nós de camuflados novinhos, eles de fardas de cores esbatidas, comidas pelo sol e pelo suor, nós estranhos, sem à vontade, peixes fora de água, eles, seguros, confiantes, olhando-nos com indiferença, cansados de terem chegado ao fim.
Um alferes acercou-se de nós e convidou-nos para o acompanhar. Os alferes milicianos eram apenas soldados mais graduados, com excepção do médico, também ele alferes mas com funções naturalmente diferentes, constituíamos uma pequena família de quatro pessoas.
Subimos para o jeep e sem que nos dissesse mais palavras iniciamos a viajem pela picada iluminada pelos faróis que rompiam os trilhos naquele mar de verde à nossa volta.
De repente estacou, apeou-se e nós o acompanhámos sem sabermos ao que íamos. Parou junto de uma árvore, do lado esquerdo da picada, em frente, do lado direito, outra árvore de igual porte.
Atada a estas árvores, impedindo a passagem, disse ele, estava uma corrente com um letreiro:
“Branco Aqui Não Passa” e falou-nos num tom calmo, natural como se nos quisesse tranquilizar.
“Agora já não há aqui terroristas, foram-se embora, mais para o norte” e sem mais palavras regressámos. A viajem fora breve, descontraída, provando isso mesmo: já ali não estavam!
Ali, era o sopé da famosa Pedra Verde que conhecíamos dos noticiários da Televisão, quando no fim de muitas toneladas de bombas largadas pela aviação em cima dela, “eles” se foram embora e um soldado nosso, talvez do pelotão daquele alferes, conseguira trepar e ser fotografado a hastear a bandeira nacional como se a guerra tivesse acabado, como se ela estivesse ganha.
Na casa abandonada pelos colonos, depois da mortandade em resposta a outra mortandade, a de Março de 1961, no norte, as populações tinham fugido: a negra, que sobreviveu, para o mato, os brancos para Luanda, a pouco mais de 100 km dali.
Da janela da improvisada sala dessa casa, onde nos instalámos, víamos a Pedra Verde, bastava olhar pela janela, imponente, enorme, dominava a paisagem lá ao longe, indiferente às guerras dos homens.
O capitão, comandante da Companhia, poucos dias depois de termos chegado, chamou-me e disse:
-“Alferes Matos, amanhã vai com o seu pelotão à Pedra Verde, sai de madrugada”.
Fui ter com os meus soldados, chamei-os à parte:
- “Amanhã, de madrugada, saímos para a Pedra Verde, já ouviram falar dela, não é verdade?”
Era a nossa primeira saída, esperava-nos a aventura, a novidade, o medo, a ansiedade…, eu sabia que não era uma saída perigosa, “eles já lá não estavam”, tinha dito o Alferes que, provavelmente, tinha participado na sua conquista, mas os soldados não tinham essa informação, intencionalmente não a transmiti, tudo o que pudesse contribuir para aumentar a atenção e o alerta dos sentidos devia ser feito, mesmo à custa de uma pequena batota.
Em 1962, os soldados que me acompanhavam eram quase todos do norte, rapazes simples, humildes, do meio rural, na maioria analfabetos.
A situação era nova, estranha, tanto para mim como para eles, mas a sociedade desse tempo colocava-nos em mundos diferentes: eu era da cidade, tinha estudos e eles, quase todos do campo onde a enxada ficara à espera sem outras perspectivas que não fosse continuarem a cavar ou simplesmente emigrar, atravessar a fronteira para um destino que os livrasse de uma vida igual às dos seus pais.
Mas naquele momento o importante era sobreviver e para isso todo o cuidado era pouco, sem esquecer que “eles” viam-nos e nós, cegos pelo verde da vegetação à qual ainda não estávamos habituados, não fazíamos a mínima ideia onde estariam, se é que estavam.
A deslocação fazia-se em silêncio absoluto, uns atrás dos outros, na chamada “bicha de pirilau”. Fossemos 200 ou 20 como éramos, e o resultado seria o mesmo, “a frente de combate” era apenas o primeiro da fila… arma em posição de fogo, dedo no gatilho, olhar fixo, demasiado fixo porque a tensão e a inexperiência eram grandes e apenas eu sabia que “eles” já não estavam ali…não estariam?
Coloquei-me em terceiro lugar com a convicção de que não corria perigo mas as advertências que tinha feito sobre a perigosidade daquele já histórico local, as “tintas negras” de que o tinha revestido, criaram um clima opressivo…na realidade era a primeira vez que estávamos no mato em operações de guerra… e a deslocação continuava lentamente.
A paisagem à nossa volta era, naquele local, de pouca vegetação mas no horizonte, ao fundo, via-se já o verde da floresta que se fechava.
Em determinado momento o soldado que ia na frente estacou, eu parei, todos se imobilizaram.
Dirigi-lhe um olhar interrogativo, ele levantou o braço e com o dedo indicador espetado apontou para um local à nossa frente.
Percebi que estava atemorizado por qualquer coisa que só ele descortinara e não me pareceu que fosse capaz de continuar, o medo apossara-se dele e estava a contagiar todos…olhei para as suas caras e não descortinei voluntários para ultrapassar o impasse, eu próprio, o único a quem tinham dito que “eles” já não estavam ali, deixara-me apanhar pela pequena batota que tinha feito, pelo medo que tinha ajudado a criar.
Finalmente saí da fila, assumi a frente e avancei, atrás de mim estavam todos parados e eu, como os heróis na guerra, um falso herói, subentenda-se, que já não sabia se havia ou não perigo, lá fui… um passo atrás do outro, pistola metralhadora em riste, defrontar o inimigo.
…e de repente, a poucos metros dos meus pés uma ave enorme, do tamanho de uma águia, maior, de um abutre, quem sabe de uma avestruz, se elas voassem, levantou voo com o estardalhaço próprio do bater das ases… e eu apanhei o maior susto da minha vida.
Levei alguns segundos a recompor-me mantendo-me de costas e com toda a fingida calma e naturalidade voltei-me, regressei ao meu lugar e mandei continuar… mas não me perguntem mais nada porque tudo o resto daquela operação esqueci.
- QUANDO O FEITIÇO SE VIRA CONTRA O FEITICEIRO...
Viver toda uma vida, ainda que apenas a da juventude, na cidade de Lisboa, na paisagem serena de uma aldeia da Beira - Baixa, ou numa pequena cidade da Estremadura do nosso Portugal, como Tomar, Abrantes ou Santarém e ser autenticamente despejado, ao fim de nove dias de viajem no paquete Vera Cruz, nas matas luxuriantes do norte de Angola, constituiu, para nós, militares da Companhia de Caçadores 388 e para mim em concreto, um contraste e choque totais.
Estávamos a cumprir as ordens de Salazar:
“PARA ANGOLA, DEPRESSA E EM FORÇA”
Eu já tinha estado em Angola, numa visita de estudo, em Setembro de 1960, mas não deu para sentir África: os aviões, os hotéis, uma ou outra estrada são mais ou menos iguais em todo o lado e a paisagem, por mais diferente e exótica que seja apenas nos enche o olhar.
Chegamos de noite ao Úcua e fomos recebidos pela tropa que íamos render, nós de camuflados novinhos, eles de fardas de cores esbatidas, comidas pelo sol e pelo suor, nós estranhos, sem à vontade, peixes fora de água, eles, seguros, confiantes, olhando-nos com indiferença, cansados de terem chegado ao fim.
Um alferes acercou-se de nós e convidou-nos para o acompanhar. Os alferes milicianos eram apenas soldados mais graduados, com excepção do médico, também ele alferes mas com funções naturalmente diferentes, constituíamos uma pequena família de quatro pessoas.
Subimos para o jeep e sem que nos dissesse mais palavras iniciamos a viajem pela picada iluminada pelos faróis que rompiam os trilhos naquele mar de verde à nossa volta.
De repente estacou, apeou-se e nós o acompanhámos sem sabermos ao que íamos. Parou junto de uma árvore, do lado esquerdo da picada, em frente, do lado direito, outra árvore de igual porte.
Atada a estas árvores, impedindo a passagem, disse ele, estava uma corrente com um letreiro:
“Branco Aqui Não Passa” e falou-nos num tom calmo, natural como se nos quisesse tranquilizar.
“Agora já não há aqui terroristas, foram-se embora, mais para o norte” e sem mais palavras regressámos. A viajem fora breve, descontraída, provando isso mesmo: já ali não estavam!
Ali, era o sopé da famosa Pedra Verde que conhecíamos dos noticiários da Televisão, quando no fim de muitas toneladas de bombas largadas pela aviação em cima dela, “eles” se foram embora e um soldado nosso, talvez do pelotão daquele alferes, conseguira trepar e ser fotografado a hastear a bandeira nacional como se a guerra tivesse acabado, como se ela estivesse ganha.
Na casa abandonada pelos colonos, depois da mortandade em resposta a outra mortandade, a de Março de 1961, no norte, as populações tinham fugido: a negra, que sobreviveu, para o mato, os brancos para Luanda, a pouco mais de 100 km dali.
Da janela da improvisada sala dessa casa, onde nos instalámos, víamos a Pedra Verde, bastava olhar pela janela, imponente, enorme, dominava a paisagem lá ao longe, indiferente às guerras dos homens.
O capitão, comandante da Companhia, poucos dias depois de termos chegado, chamou-me e disse:
-“Alferes Matos, amanhã vai com o seu pelotão à Pedra Verde, sai de madrugada”.
Fui ter com os meus soldados, chamei-os à parte:
- “Amanhã, de madrugada, saímos para a Pedra Verde, já ouviram falar dela, não é verdade?”
Era a nossa primeira saída, esperava-nos a aventura, a novidade, o medo, a ansiedade…, eu sabia que não era uma saída perigosa, “eles já lá não estavam”, tinha dito o Alferes que, provavelmente, tinha participado na sua conquista, mas os soldados não tinham essa informação, intencionalmente não a transmiti, tudo o que pudesse contribuir para aumentar a atenção e o alerta dos sentidos devia ser feito, mesmo à custa de uma pequena batota.
Em 1962, os soldados que me acompanhavam eram quase todos do norte, rapazes simples, humildes, do meio rural, na maioria analfabetos.
A situação era nova, estranha, tanto para mim como para eles, mas a sociedade desse tempo colocava-nos em mundos diferentes: eu era da cidade, tinha estudos e eles, quase todos do campo onde a enxada ficara à espera sem outras perspectivas que não fosse continuarem a cavar ou simplesmente emigrar, atravessar a fronteira para um destino que os livrasse de uma vida igual às dos seus pais.
Mas naquele momento o importante era sobreviver e para isso todo o cuidado era pouco, sem esquecer que “eles” viam-nos e nós, cegos pelo verde da vegetação à qual ainda não estávamos habituados, não fazíamos a mínima ideia onde estariam, se é que estavam.
A deslocação fazia-se em silêncio absoluto, uns atrás dos outros, na chamada “bicha de pirilau”. Fossemos 200 ou 20 como éramos, e o resultado seria o mesmo, “a frente de combate” era apenas o primeiro da fila… arma em posição de fogo, dedo no gatilho, olhar fixo, demasiado fixo porque a tensão e a inexperiência eram grandes e apenas eu sabia que “eles” já não estavam ali…não estariam?
Coloquei-me em terceiro lugar com a convicção de que não corria perigo mas as advertências que tinha feito sobre a perigosidade daquele já histórico local, as “tintas negras” de que o tinha revestido, criaram um clima opressivo…na realidade era a primeira vez que estávamos no mato em operações de guerra… e a deslocação continuava lentamente.
A paisagem à nossa volta era, naquele local, de pouca vegetação mas no horizonte, ao fundo, via-se já o verde da floresta que se fechava.
Em determinado momento o soldado que ia na frente estacou, eu parei, todos se imobilizaram.
Dirigi-lhe um olhar interrogativo, ele levantou o braço e com o dedo indicador espetado apontou para um local à nossa frente.
Percebi que estava atemorizado por qualquer coisa que só ele descortinara e não me pareceu que fosse capaz de continuar, o medo apossara-se dele e estava a contagiar todos…olhei para as suas caras e não descortinei voluntários para ultrapassar o impasse, eu próprio, o único a quem tinham dito que “eles” já não estavam ali, deixara-me apanhar pela pequena batota que tinha feito, pelo medo que tinha ajudado a criar.
Finalmente saí da fila, assumi a frente e avancei, atrás de mim estavam todos parados e eu, como os heróis na guerra, um falso herói, subentenda-se, que já não sabia se havia ou não perigo, lá fui… um passo atrás do outro, pistola metralhadora em riste, defrontar o inimigo.
…e de repente, a poucos metros dos meus pés uma ave enorme, do tamanho de uma águia, maior, de um abutre, quem sabe de uma avestruz, se elas voassem, levantou voo com o estardalhaço próprio do bater das ases… e eu apanhei o maior susto da minha vida.
Levei alguns segundos a recompor-me mantendo-me de costas e com toda a fingida calma e naturalidade voltei-me, regressei ao meu lugar e mandei continuar… mas não me perguntem mais nada porque tudo o resto daquela operação esqueci.
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