quarta-feira, dezembro 31, 2008



TIETA DO AGRESTE

EPISÓDIO Nº 5

Praia de Mangue Seco



Pois já lá vai mais de seis meses que ele morreu e até agora o padre não viu a cor do dinheiro. Está depositado na mão do juiz, em Esplanada, porque os parentes botaram questão, com advogado e tudo. Doutor Almiro disse que, pela lei, metade é deles. Daí eu fui perguntando, com não quer nada…

- Tu quer dizer que quando uma pessoa morre, metade do que ela tem fica para parentes?

- É isso mesmo…Perpétua busca no bolso da saia m lenço para enxugar o suor fino na testa com o lenço aparece um terço de contas negras.

- Quer dizer que, se tu morrer, metade do que é teu fica para mim e para o pai…

- Tu não presta atenção no que se fala. Só quando o falecido não tem filhos; é o caso dela mas não o meu. O que eu deixar quando morrer vai ser repartido entre Ricardo e Peto, meus filhos, meus únicos herdeiros. Já foi assim quando o Major morreu – faz o sinal da cruz, eleva os olhos murmurando Deus o tenha em sua glória – a herança foi dividida, metade para mim, metade para os meninos. O doutor Almiro…

- Tu perguntou isso também?

- Sempre vale a pena saber.

- Tu pensa que ela morreu e que o marido não diz nada para ficar com tudo?

- E não pode ser? Porque ela nunca deu o endereço para nós? Mandou a gente escrever para caixa-postal, onde já se viu?
Proibição do marido, para a gente não saber. Você sabe o sobrenome dele? Nem eu. É Comendador para cá, Comendador para lá, e acabou-se, nada de sobrenome. Por quê? Tu não atina nestas coisas mas eu tenho pensado muito nisso e tirei as minhas conclusões.

Também Elisa havia atentado naquelas esquisitices. Em sua opinião, porém, outro era o significado da falta de endereço, de sobrenome, da ausência de maiores detalhes sobre a vida e família: Antonieta perdoara os agravos, não guardara magoa, mas não esquecera o passado, não queria maior aproximação com os parentes, gente mesquinha do interior, não desejava misturá-los a seu mundo maravilhoso. Ajudava pai e irmãs como cumpre às filhas quando em boa situação. Obrigação cumprida, a consciência em paz, ponto final: reserva e distância. Se querem saber, faz ela muito bem! Era isso e nada mais, não passando o resto de invenções da Perpétua, a cachola sempre a pensar malfeitos e desgraças. Se Antonieta decidisse deixar alguma coisa para o pai e as irmãs, após a morte, tomaria as medidas necessárias com antecedência, estaria tudo disposto e estabelecido.

- Não acredito, não. Se ela tivesse morrido, a gente havia de saber.

Termina de botar a mesa, fica parada, o olhar perdido:

- Está viajando, gozando a vida. Toda vez que sai a passeio, a carta atrasa. Atrasa mas chega. Lembra quando foi a Buenos Aires e mandou aquele cartão tão bonito? Vida é a dela: viagens, passeios, festas. Tieta é muito boa de pensar na gente no meio de tanta animação. Se fosse comigo que tivesse acontecido, nunca mais, nunca mais mesmo, eu havia de dar notícias.

Volta a vista para Perpétua, agora a passar as contas do terço:

- Vou dizer uma coisa, acredite se quiser. Mesmo se fosse para herdar o dinheiro todinho, sem ter que dividir com ninguém, nem assim eu desejo a morte dela.

- E quem deseja? – Perpétua suspende a reza, a conta negra entre os dedos:

- Mas senão chegar mais cartas, então é sinal que Antonieta morreu. Aí eu vou mover mundos e fundos até descobrir o marido dela e tomar a minha parte.

- Tu acaba lesa de pensar tanta maluquice. Ela está passeando, se divertindo. Por que agourar criatura tão direita? A carta não passa de amanhã.

- Tomara mesmo. Fui em casa do velho, ele está nos azeites. Sabe o que me perguntou? Se Astério não tinha metido a mão no dinheiro e pago alguma dívida, como fez daquela vez que usou o cheque para resgatar a letra vencida. O velho pensa que a gente vive roubando ele. – Volta a dedilhar o terço, os lábios sem pintura movem-se em silêncio.

Com Perpétua é assim, taco a taco: Elisa fizera referência à intriga que resultara na partida de Antonieta, Perpétua, na volta da conversa, deu o troco, desentocou o malsinado assunto da duplicata, velho de cinco anos. A voz cansada, Elisa revida sem veemência:

- Tu sabe que, se ele não pagasse a letra, a loja ia à falência. Tu sabe, o Pai sabe…

Não cresce o tom de voz, monótono:

- Mas que a gente vive roubando, ah!, isso vive, não adianta tu ficar aí sentada de terço na mão, mastigando padre-nosso com esse ar de santa.

- Nunca toquei num tostão do velho…

- Nem ele ia deixar. É dela que a gente rouba. Para que ela manda o cheque todos o mês?

- Para as despesas do velho.

- E para que mais?

- Para ajudar na educação dos sobrinhos.

- Isso mesmo. Para ajudar na educação dos filhos da gente. O meu não chegou a completar dois anos e eu nunca mais peguei menino. Nunca mais, Deus não quis…

Os olhos vão da sala de jantar para o quarto de dormir, pela porta aberta vê a cama de casal ainda por arrumar. Deus não quis? Nem para isso Astério serve… A voz neutra prossegue:

- E tu? Será que tu mandou dizer a Tieta que Peto está no Grupo Escolar, não paga nem um vintém? Que padre Mariano arranjou com o Bispo o seminário de graça para cardo? Eu sei o que tu mandou dizer: o preço da Escola da Dona Carlota, a mensalidade do seminário. Isso, sim, tu mandou dizer, pró resto boca trancada. Por que tu puxa de novo essa história da letra que Astério resgatou se cada um de nós tem seus podres?

- Foi o velho que falou, só repeti o que ele disse.

- Um dia eu ainda tomo coragem, escrevo a ela contando a verdade: que não tenho mais filho nenhum, o que tinha a doença levou mas que a gente precisa tanto do dinheiro que ela manda, mas tanto a ponto de me ter faltado forças para comunicar a morte de Toninho. Era capaz de ela ficar com pena e mandar até mais do que manda. Só que não tenho coragem de arriscar…Por que a gente é assim, Perpétua? Por que a gente não presta? É por isso que ela não quer aproximação, não manda endereço, ajuda de longe.

A voz se faz pesada, áspera, quase desagradável como a de Perpétua:

- E ela age muito bem porque se eu tivesse o endereço…

Os olhos fitam o vazio:

- Ah!, se eu soubesse o endereço já tinha arribado para lá!

Perpétua chega ao fim do terço, beija a pequena cruz:

- Tem hora que tu nem prece mulher feita e casada, fala o que não deve. O que tu precisa é ir ajudar na igreja em vez de ficar lendo revista e ouvindo rádio, gastando o tempo com essas porcarias.

Elisa deixa cair os braços, a voz novamente neutra:

- Amanhã, logo que a marinete chegue, passo no correio. Vem amanhã tu vai ver.

- Deus te ouça. Com a desculpa da doença, Lula Pedreiro há três meses não paga aluguel. Agora mandou a chave, foi morar com o filho, deixou a casa imunda, um chiqueiro. Para alugar vou ter que dar pelo menos uma demão de cal.

- Tu te queixa sem razão. Mora em casa própria e ainda tem mais duas para alugar, fora a pensão do falecido. A gente, senão fosse pelo dinheiro que ela manda pró anjinho, nem numa sessão de cinema podia ir.

- Amanhã, me avisa logo se chegou ou não. Se não chegar, vou tomar minhas previdências.

- Por que não fica para almoçar? O que dá para dois dá para três.

- Eu? Comer carne em dia de sexta – feira? Tu bem sabe que é pecado. É por isso que vocês não vão para a frente. Não cumprem a lei de Deus.

Ergue-se da cadeira, guarda o terço no bolso da saia. Toda em negro, a blusa de mangas compridas, sem decote, fechada no pescoço, o coque alto, coberto pela mantilha, o rosto severo, virtuosa e devota viúva. Benze-se ao ouvir o sino da Matriz nas badaladas do meio – dia, encaminha-se para porta. Na rua deserta, ressoam os passos de Astério. O mormaço sobe do chão, desce do céu.

Elisa suspira, dirige-se para a cozinha.
(continua)

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