terça-feira, dezembro 30, 2008


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 4
CERIMINIOSO CAPÍTULO ONDE SE TRAVA CONHECIMENTO COM TRÊS IRMÃS, A POBRE, A
REMEDIADA E A RICA; ESTANDO A ÚLTIMA AUSENTE – QUEM SABE PARA TODO O SEMPRE; ONDE SE CONHECE DA CARTA MENSAL E DO CHEQUE IDEM, ANSIOSAMENTE AGUARDADOS, SOBRETUDO O CHEQUE, COMO É NATURAL, E TAMBÉM DE PEQUENAS MISÉRIAS E MÍNIMA ESPERANÇA, NA HORA DO MORMAÇO; ONDE, EM RESUMO, SE COLOCA INQIETANTE PERGUNTA:
TIETA ESTÀ VIVA OU MORTA?
SINGRA OS MARES EM CRUZEIRO DE TURISMO OU JAZ EM CEMITÉRIO PAULISTA?


Empertigada na cadeira, as mãos cruzadas sobre o peito magro, toda em negro dos sapatos ao xaile, coberta assim de luto fechado desde a morte do marido, Perpétua baixa a voz, lança a fúnebre hipótese:

- E se sucedeu alguma coisa com ela? – adianta a cabeça para onde está a irmã, sussurra: - E se ela bateu a caçoleta? – mesmo sussurrada, a voz, sibilante e ríspida , é desagradável:

- E se ela morreu?

Elisa estremece, solta o pano de prato, derrotada pelo mau presságio. Há dois dias e duas noites longas tenta arrancar da cabeça esse maldito pressentimento a persegui-la, a roubar-lhe o sono, a deixá-la com os nervos em ponta.

- Ai, Senhor meu Deus!

Perpétua descruza as mãos, alisa a saia de gorgorão bem passada, ratifica com um movimento de cabeça; não fez uma pergunta e sim uma afirmação. De comprovação fácil, aliás:

- Estamos a vinte e oito, praticamente no fim do mês. A carta sempre chega por volta de cinco, nunca passa de dez. Para mim, ela bateu a caçoleta.

Mesmo no desalinho da manhã de ocupações domésticas, o rosto de Elisa é bonito: morena de tez pálida, olhos melancólicos, lábios carnudos. Sob o desleixo do vestido velho e amarfanhado, chinelas gastas, ergue-se o corpo esbelto, de ancas altas e seios rijos. Um lampejo de curiosidade brota nos olhos assustados. Elisa busca na face da irmã outro sentimento além da preocupação pelo dinheiro. Não encontra: a proclamada morte de Tieta não aflige Perpétua, teme somente pela sorte do cheque. A cessação da remessa mensal assusta igualmente Elisa: não só perderiam a ajuda indispensável como teriam de sustentar o pai e a mãe, onde arranjar o necessário? Um horror, Deus não permita!

Um horror, sem dúvida, porém havia mais e pior. Ao calafrio de medo sucede a tristeza, um aperto no coração. Se ela morreu, então tudo se acabou para sempre, não somente o cheque, também a ténue esperança; sobrará apenas o vazio. Essa irmã Antonieta – meia irmã, aliás, pois Elisa nascera do segundo e inesperado casamento do velho Zé Esteves – de quem não conserva lembrança, a respeito de quem sabe tão pouco, é a razão de ser de Elisa.

Nos últimos anos, sobretudo após o casamento, começara a idealizar a figura da ausente, espécie de génio bom, heroína de conto da carochinha, imagem fugidia, quase irreal, a se fazer concreta no auxílio mensal, nos esporádicos presentes.

Reunindo frases ouvidas, narrativas de antigos enredos, comentários do pai e da mãe; a letra larga e redonda nas pequenas cartas – parcas em palavras e notícias, reduzidas às mesmas perguntas pela saúde dos velhos, das irmãs, dos sobrinhos, mas não secas e frias, contendo, além do cheque, abraços e beijos – o perfume ainda a evolar-se do envelope após tantos dias de correio; os embrulhos de roupa usada, quase nova; o título de comendador ostentado pelo marido; a fotografia na revista, Elisa construíra, pouco a pouco imaginário retrato da irmã, fada alegre, bela e bondosa, habitando um mundo rico e feliz. Nessa visão pensa e nela se apoia quando sonha com outra vida, mais além da pasmaceira e do cansaço. Morta Antonieta, que restará a Elisa? As revistas de telenovelas, nada mais. Nem isso, meu Deus!

Onde os níqueis, sobrados das despesas, com que comprá-las?

Tristeza por tudo quanto perderá, o dinheiro mensal, os presentes, o devaneio, o sonho, mas também tristeza simplesmente pela morte da irmã; gostará tanto de alguém quanto gosta dessa meia-irmã que não conhece? Reage, na necessidade de conservar pelo menos a esperança: Perpétua imagina sempre o pior, boca de agouro.

- Se ela tivesse morrido, a gente já tinha sabido, alguém havia de dar a notícia. Em casa dela tem nosso endereço, todo o mês ela escreve, não é? Haviam de avisar… - há dois dias, na labuta da casa, na cama de insónias, repete estes argumentos para si mesma.

- Avisar? Quem? Só se o marido dela e a família dele forem malucos.

- Malucos? Não vejo porquê.

Perpétua estuda a irmã em silêncio, a se perguntar se deve ou não contar, decide-se por fim, de qualquer maneira ela terá de saber:

- Porque, com a morte dela, a gente tem direito a uma parte da herança. Nós três: o velho, eu e você.

Elisa volta a enxugar os pratos, de onde Perpétua tirara aquela ideia de herança? Cada bobagem!

- Quem vai herdar é o marido dela, o Comendador. Por que a gente havia de herdar? Pró pai, pode ser que ela deixe alguma coisa, tem sido boa filha, boa até de mais. Mas pra nós duas, por quê? Quando ela saiu de casa, eu tinha menos de um ano. E tu, não foi por tua culpa que ela foi embora?

- Não foi tu que xeretou ao pai? Abriu o bico, ele quebrou a pobre no pau, tocou ela rua afora, não foi? Mãe me contou como se deu e Pai confirmou, disse que tu foi a culpada.

- Dizem isso agora, para adular. Depois que ela começou a mandar dinheiro, virou santa. Por que tua mãe não tomou as dores na ocasião? Quem foi que deu a surra, quem botou ela pra fora de casa? Eu ou o Velho?

Elisa estende sobre a mesa a toalha manchada de azeite, de feijão, de café.

- Astério tem mão podre, não sabe se servir sem derramar caldos e molhos, o infeliz. Encolhe os ombros não responde à pergunta de Perpétua, o pai e a irmã que decidam entre eles de quem a culpa; dela, Elisa, é que não foi, não completara um ano de idade quando denúncia, expulsão e fuga aconteceram.

Perpétua semicerra os olhos gáseos, por que Elisa se empenha em recordar o passado? A própria Antonieta não esquecera, há muito, agravos e injustiças? Não envia dinheiro, presentes? Não ajuda nas despesas? Ademais, há males que vêm para bem, não é mesmo? Se ela não tivesse sido posta no olho da rua, em vez de partir para o Sul e triunfar em S. Paulo, bem casada, cheia de dinheiro, feliz da vida, teria ficado ali, naquele buraco, vegetando na pobreza, sem direito a noivado e casamento pois a história com o caixeiro viajante logo se tornara de domínio público. Sem direito a nada, mera criada do pai e da madrasta.
- Se tu não lembra essas coisas por que tu há de lembrar?

- Não fiz por mal, só para mostrar que ela não tem motivo para deixar herança para nós duas.

- Não depende dela querer ou não querer… - Perpétua descerra os olhos, compõe a saia, retira invisível cisco da blusa: - Quando ela morrer, metade da fortuna fica para o marido e, como ela não tem filhos, a outra metade é dividida entre os parentes, os parentes próximos, o Velho e nós, o pai e as irmãs.

Como é que tu sabe?

- Doutor Almiro me disse…

- O promotor? E tu foi falar com ele?

- Propriamente falar, não falei. Ele estava conversando com padre Mariano, eu e outras zeladoras de junto, ouvindo. Estavam falando da herança de seu Lito, que deixou o dinheiro todo para o padre dizer missa pela salvação da alma dele na Igreja da Senhora Sant’Ana. (continua)

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