domingo, janeiro 11, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 15

CONTINUAÇÃO DO CAPÍTULO INTERROMPIDO


Quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de esperança. Se Perpétua, mais velha, mais feia – pois simpatia também marca ponto em concurso de miss – mas com aquela cara de prisão de ventre crónica, sem graça, ressentida, encontrara quem a quisesse, quem lhe pedisse a mão em casamento e a levasse ao altar de véu e grinalda, figura ridícula!, cabia a Carmosina, mais moça, inteligente, culta, cultíssima! risonha e cordial, ao demais cozinheira de mão cheia, o direito a sonhar, a não cair em desespero.

Ah!, Major Cupertino Batista existiu um só, milagres não se repetem. Reformado por motivos de saúde, cinquentão asmático e cardíaco, curto de entendimento, duro de cabeça, obtuso, um bobo alegre, nem por tudo isso partido desprezível. Solteiro, tinha economias, reservas monetárias e físicas: ao partir para o reino dos céus deixara Perpétua com dois filhos e herdeira de três casas, além da pensão e do dinheiro a render juros. A herança, Carmosina dava de barato mas – suspira – durante seis anos e um mês, setenta e três meses, duas mil duzentas e vinte e uma noites, contando a do ano bissexto, a bruaca, a desinfeliz – a sortuda, a felizarda! – dormira em cama de casal com um homem ao lado, sob as mesmas cobertas, marido válido até à última gota, pois Perpétua tivera aborto pouco antes do Major bater continência e a festa terminar.

Escreve luxúria letra a letra nos quadrados de jogo das palavras cruzadas, o pensamento voa de Perpétua para Elisa (a pobre, agoniada, esquecera as revistas); de Elisa para Antonieta.

Antonieta, essa sim, merecera a vida conjugal e a fortuna: alegre, divertida, bondosa, um encanto de criatura. Muito chegada à casa de Carmosina, colegas na escola primária; dona Milú, dedicava-lhe particular estima e a defendia quando as más-línguas vinham tosar na pele da moça, melhor dito nas carnes da rapariga. Moça falada, na boca das comadres:

- Aquela já perdeu os tampos há muito…

- Já foi chamada às ordens…

- Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é… dá para Deus e o mundo…

Dona Milú punha fim à conversa, dispersava o elenco;

- Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periquita. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.

Parecia mudar de assunto:

- Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gémeas, Francisca. Não sabe? Pois lhe informo: Mãos de Ouro e Prata, achei lindo… - Dona Milú era uma parada!

Quando Tieta, surrada e expulsa partiu no caminhão, Carmosina viera se despedir, a única. Vá dizer adeus a sua amiga, a mãe ordenara. Visíveis as marcas da véspera, o bordão atingira-lhe o rosto, roxas equimoses nas pernas, Tieta não se queixou. Pode ser para meu bem, disse. Acertara.

Nos últimos onze anos e sete meses, raro o dia em que dona Carmosina não recorda Antonieta. Desde a chegada da primeira missiva, acompanhara, carta a carta, a correspondência trocada entre Sant’Ana do Agreste e a Caixa Postal 6211 da Capital de São Paulo. Está por dentro de tudo, sabe mais que as próprias irmãs de Tieta, muito mais. Por conhecimento directo e por dedução.

Vira o cheque engordar ao passar do tempo, com a desvalorização do cruzeiro e as lamúrias das irmãs. Corrigira – na prática redigira – as cartas de Elisa, fraca na gramática; lera as de Perpétua, as de Perpétua e as demais. As irmãs, após a morte do Major, haviam dividido o dever e o prazer das respostas, como dividiam o conteúdo das encomendas postais, vestidos, blusas e saias, camisolas. Perpétua, quando lhe competia escrever, vinha com o envelope fechado, tolice! Dona Carmosina não merecia o ordenado e o privilégio do cargo se não fosse perita em descolar envelopes, ler as páginas num piscar de olhos e por tudo em ordem novamente. Só lhe custava conter o desejo de emendar os erros de português.

Além da indefectível bênção do velho Zé Esteves. Deus te abençoe e te aumente, minha filha, cada carta continha queixas da filha, louvores à querida mana e a curiosidade das irmãs e do cunhado. Antonieta respondia com bilhetes curtos – a letra graúda, o papel caro e chique com um A gótico em alto-relevo – que Elisa e dona Carmosina devoravam juntas, ali mesmo na repartição.

Dona Carmosina lera também a carta de Ricardo, a de Ricardo e outras. Aliás, fora a ingénua epístola do rapaz, pedindo à tia bênção, bola de futebol e discrição que… nada, isso não interessa a ninguém – dona Carmosina afasta a lembrança, retorna às palavras cruzadas: fruta brasileira de origem asiática, cinco letras, fácil demais.

Essa longa correspondência, agora de repente encerrada sem explicação válida, a não ser doença grave ou morte de Tieta, revestia-se de aspectos dignos de atenção e estudo, a começar pela falta de endereço completo da destinatária de São Paulo, rua, número da porta e do apartamento, se vivesse em edifício; apenas uma caixa postal, fria e anónima. Apesar de Agreste não passar de um ovo onde todos se conheciam, tanto Perpétua quanto Elisa apressaram-se a enviar endereços completos. Perpétua Esteves Batista, Praça Desembargador Oliva, número 19; Elisa Esteves Simas Rua do Rosado, 28; inclusive endereço do pai: José Esteves Filho, Beco da Matança, s.n.

E o marido? Sem idade, sem rosto, impalpável. Pronome, comendas, vagas indústrias, os cabelos brancos na foto da revista. Dona Carmosina dedicou grande parte do seu tempo à análise e ao esclarecimento da apaixonante advinha. Reunindo dados, pistas e conjecturando.

O Major, ainda vivo, encarregara-se da resposta inicial mas não chegou ao fim sem pedir auxílio a dona Carmosina. Ela pôs ordem nas notícias, dando ênfase aos factos, quando necessário. Carta longa, relatório abarcando cerca de quinze anos de acontecimentos.

Notícias de toda a família, detalhadas. Do pai, Zé Esteves, beirando os oitenta mas sempre rijo, e de Tonha, a segunda esposa (mais moça do que Perpétua, da idade de Tieta, mas acabada na pobreza e no desleixo, simples apêndice do Velho). Vivia o casal da caridade de filhas e genros, nada possuindo de seu, nem bens nem rendas. Zé Esteves, trapalhão a julgar-se sabido, na ânsia de enganar os outros pusera fora terras , rebanhos de cabras, plantações de mandioca, a casa própria, tudo. Abençoava a filha e a perdoava, pedia-lhe uma esmola. Dona Carmosina modificou a redacção, a forma e o conteúdo, em lugar de Zé Esteves perdoar, pediu perdão à filha, falou da velhice e da pobreza, insinuando ajuda; um pai pode pedir perdão mas não pode pedir esmola aos filhos. Trecho tão comovente, na bela letra do Major, ia tocar o coração de Tieta, a própria dona Carmosina ficara com os olhos húmidos. Sempre tivera jeito para escrever, jeito e vontade. Mas, cadê coragem?

Relato do casamento de Perpétua, nome e título do marido, Major Cupertino Batista, oficial reformado da polícia Militar do Estado, seu cunhado às ordens. Deus abençoara o matrimónio, dera-lhe dois filhos, Ricardo, de cinco anos, Cupertino, dito Peto, de dois, e agora novamente fecundara o ventre de Perpétua, grávida daquele que seria o terceiro se houvesse nascido.

O Major, bom de espoleta, não negava fogo, constatara dona Carmosina, mas não tocou nesse trecho, não queria histórias com Perpétua. Encarregou-se, sim, de descrever o casamento de Elisa, a noiva mais linda já vista em Agreste, com Astério Simas, filho e herdeiro de seu Ananias, aquele da loja de fazendas da Rua da Frente, só que a loja nem parecia a mesma.

Na longínqua e decadente cidade de Sant’Ana do Agreste o comércio reduzira-se a metade naqueles quinze anos. Também a população diminuíra, composta por uma maioria de velhos, pois o clima continuava admirável, prolongando a vida dos que ali se deixavam ficar apesar da pobreza, da falta de recursos e de futuro. O povo só não morria de fome porque o rio e o mangue forneciam com fartura peixes, guaiamus, caranguejos, pitus incomparáveis, e sobravam frutas o ano inteiro: bananas, mangas, jacas, mangabas, pinhas, abacaxis, goiabas e araçás, sapotis e melancias e o coqueiral sem fim e sem dono.

Site Meter