sexta-feira, janeiro 09, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 14

ENQUANTO O LEITOR RESPIRA; O AUTOR SE APROVEITA E ABUSA



Boa ideia, sim, meritória. Capítulos longos cansam, tornam a narrativa pesada e enfadonha, conduzem ao desinteresse e ao sono. Uma pausa, abre, inclusive, tempo e espaço para necessárias explicações sobre detalhes que os personagens torcem, modificam ou simplesmente suprimem, ao sabor de interesses variados, confessáveis ou escusos, mas cujo conhecimento cabal é direito sagrado do leitor – para saber ele paga os preços actuais, incríveis!

Carmosina é useira e vezeira em guardar segredos, em baralhar pistas, em impedir a circulação completa ou parcial de determinadas notícias, causando grave dano às xeretas do adro da igreja e à população de Agreste em geral pois quem não se mete na vida alheia, não pergunta, não conta, não comenta?

Se excepção existe, não conheço. Falar da vida alheia é a diversão principal do lugar, grosseria e mau carácter de uns, arte e subtileza de outros.

Intolerável grosseria de Bafo de Bode, rebotalho da sociedade, apodrecido por dentro e por fora. Quando do grande porre semanal, aquele que começa na noite de sábado, após a feira onde esmolou ao sol o dia todo e prossegue pelo Domingo, esse detrito malcheiroso desce a rua aos trancos e barrancos, a enlamear a honra de distintas famílias, a proclamar maledicências, injúrias e infâmias, desgraçadamente quase sempre comprovadas:

- Cuidado com os chifres, Chico Sobrinho, estão crescendo demais. Tua mulher, Ritinha, vive dando na beira do rio…não vou dizer a quem, não sou dedo duro.

Nem ele, nem eu e daí? Arte subtil na voz antiga de dona Milú, mãe de Carmosina, uma santa, quem duvida?

- Estão dizendo que Ritinha anda de namoro com seu Lindolfo, mas deve ser mentira, o povo gosta de falar. Ritinha paga por ser muito dada, às vezes demais…o génio dela é esse, não tem culpa.

A população está cansada de saber que Ritinha e Lindolfo, tesoureiro da Prefeitura, se encontram nos esconsos do rio. O melhor é fazer como Chico Sobrinho, para palavras loucas ouvidos moucos, quem dá atenção a Bafo de Bode?

Voltemos, porém, a Carmosina e ao comandante Dário pois deles se trata, entre eles existe uma trama. Não, nada do que estão pensado! Como diz Osnar, apontando o exemplo do comandante, não há criatura perfeita. Pelas frestas das janelas semiabertas, olhares lânguidos ou ardentes, conforme idade e fogo, acompanham-lhe o passo gingado de convés quando ele desfila em Agreste, vistoso, todo feito de músculo, corpo jovem, rosto maduro e vivido, cabeleira rebelde e grisalha; pode-se dar ao luxo de escolher, dá-se ao desperdício de ignorar a todas elas, sem abrir excepção sequer para Carol, a amásia de Modesto Pires, obra-prima de Deus e da fusão das raças. Monógamo declarado, o comandante; amoroso da esposa, dona Laura, e Carmosina é sua amiga fiel.

Amiga fiel, aí o XPTO da questão. Para proveito dos leitores, utilizo a pausa e tento decifrar o enigma.

Vou direito ao assunto: qual a patente do nosso personagem, quantas divisas ostenta na farda esquecida no fundo do armário? Ninguém sabe, a todos basta o título de comandante e foi isso que lhe disse exactamente dona Carmosina quando ele, honrado e modesto, quis proclamar a verdade. Ela, a responsável. Tanto fala como esconde, tudo depende.

Que Dário de Queluz, valoroso filho de Agreste, pertenceu à Marinha de Guerra, dando realce e lustre ao torrão natal, nada mais certo, sobram as provas; fulge uma delas no bangalô em cima da escrivaninha, ao lado dos trabalhos feitos em coco pelo comandante – medalha de ouro, recordando acto de bravura, reluz sob o vidro da redoma. Que entrou modestamente de marinheiro, rapazola emigrado em busca de trabalho, todos sabem. Que subiu, degrau a degrau, pelo esforço e pelo estudo, durante os vinte anos de vida militar, também é facto de conhecimento público. Mas subiu até onde? Eis o busílis: quando, despida a túnica, retornou aos ares pátrios e puros, alguém logo o proclamou Almirante. Ele recusou o título e a bajulação:

- Não cheguei lá, quem sou eu? Ao demais Almirante é título que só existe em tempo de guerra.

Disseram-no, então, Comandante e se curiosidade houve em saber até onde chegara, não se manifestou, ele impunha respeito e era um atleta.

Comandante, título perfeito em qualquer caso, em qualquer posto.

Arte subtil, a vida alheia. Um dia, os dois conversando na repartição, Carmosina perguntou, como por acaso:

- Comandante, me esclareça. Na Marinha de Guerra, os praças podem chegar ao posto de Capitão-de-fragata no quadro de Oficial Auxiliar da Armada, não é certo?

Percebeu Dário a subtileza; a curiosidade a corroer o coração da amiga. Sorriu, tinha um sorriso sem malícia de homem bom e direito, e respondeu:

- Não subi tanto, minha boa Carmosina. Cheguei apenas a…

Ela tapou-lhe a boca com a mão:

- Baixinho, que mais ninguém ouça…

E por quê?

- Os outros pensam que sim, que chegou e ultrapassou, estão orgulhosos disso. Por que dissuadi-los? Comandante, basta e sobra.

Apurou o ouvido para ouvir, ouviu e acabou-se. Comandante agora a comandar mar e vento nos cômoros de Mangue Seco, desnecessários se tornam quaisquer detalhes, dragonas e ordens de serviço. Carmosina sabe, quanto basta, a confidência não passou dali, nem mesmo à velha Milú ela contou. Contar à mãe? Estão loucos? No dia seguinte, Agreste inteiro saberia.

Eis aí em pratos limpos o que desejei esclarecer, aproveitando a interrupção do capítulo e terminando por escrever mais um, perdoem. Qual o posto de facto alcançado pelo Comandante? Ah! isso não sei dizer, somente Carmosina sabe e, egoísta, faz boca de siri, esconde a informação. Se algum dos senhores por acaso a obtiver, seria favor comunicar-me.

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