Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nª 25
DA MORTE E DO ENTERRO DE TIETA COM SERMÃO E INESPERADAS REVELAÇÔES DO PADRE MARIANO – AO TURÍBOLO O SOBRINHO RICARDO, COROINHA
Naquele fim-de-semana em Sant’Ana do Agreste, Tieta morreu e foi enterrada em meio à consternação geral. Não se faltará à verdade dizendo-se que toda a gente da cidadezinha participou do prematuro velório. A notícia atravessou os portões da Fazenda Tapitanga, tirou o coronel Artur do sossego dominical, trazendo-o aflito às ruas de Agreste. O rebanho de Zé Esteves só prosperara enquanto Tieta, meninota, dele se ocupou. Cabras gordas e parideiras.
Lágrimas e orações, tristeza e ameaças, compaixão e elogios, projectos e comentários, gente a apresentar pêsames. Alguns, rancorosos, mal escondendo a satisfação de ver chegada ao fim a imerecida boa vida de Zé Esteves, de cujo passado de enrolão maldoso e salafrário guardavam memória e cicatrizes.
- Na dependência de Perpétua, ele vai roer boca de sino…
- É o que tu pensa… agora é que o filho da puta vai se encher de grana, não há justiça na terra…
- Troque em miúdos.
- A família vai herdar um dinheirão, metade é dele.
- Velhas comadres, xeretas de idade indefinível, esquecidas pela morte que só de raro em raro dá-se à pena de passar por aqueles cafundós, desenterraram do profundo esquecimento onde jaziam sepultados os desplantes e pecados da moça Tieta, de tampos comidos.
- Ainda me lembro da surra. Naquele tempo o Velho morava na praça, perto da gente. Foi quase de manhã. Quebrou o pau com vontade.
- Também, aqui para nós, ela fez por merecer. Desavergonhada, escandalosa. Até homem casado.
- Veja a cara de seu Barbosinha, é um desgosto só.
- Dizem que não se casou pensando nela.
- Será? É bem capaz. E essa história da herança, que é que vocês sabem?
- Psiu! Lá vem Perpétua.
Caras de enterro, olhos lamurientos seguindo Perpétua no caminho do adro. O busto empinado, um pente negro de espanhola enfiado no alto do coque – não o usava desde a morte do Major, presente dele – o mesmo vestido dos funerais do marido, contudo parece mais moça do que aquela jovem de vinte e poucos anos, já velha de mantilha negra, já solteirona e carola apesar da pouca idade, a beata mais beata, a xereta mais xereta, indo xeretar da irmã ao pai: todas as noites pula a janela, vai encontrar o caixeiro-viajante na beira do rio. Todo o mundo fala, nos cobre de vergonha.
Andam para Perpétua, cercam-na, num coro de louvores à falecida, filha e irmã admirável a ajudar a família e agora a enriquecê-la. Quantas missas vai mandar dizer pela alma dela? Pelos pecados antigos, em parte certamente perdoados por Deus, resgatados em vida de decência e caridade.
Mesmo as mais obstinadas a recordar malfeitos reconhecem os atributos de coração, bondade e gentileza, o riso alegre, o prazer em ajudar, sem falar na graça e na formosura, rosto angelical, corpo, ai, de requebro e dengue. Dona Milú resume tudo numa frase:
- Nunca fez nada por mal e o bem que fez não tem medida.
A boa filha, aquela que, sem guardar rancor, fora o amparo dos pais e das irmãs, sendo a mãe apenas madrasta e a irmã mais moça apenas meia-irmã, o que torna ainda mais meritório o procedimento, mais valiosa cada moeda.
Tudo isso vindo de São Paulo, da grande metrópole, onde Antonieta triunfara, com marido rico e ilustre, industrial, comendador, paulista de quatrocentos anos, dinheiro à farta, à la godaça. Elevando o nome de Sant’Ana do Agreste.
Um filho da terra chegara a possuir padaria em Cascadura e, recordando a cidade natal e a santa padroeira, baptizou-a de Panificação Sant’Ana do Agreste; enviou aos parentes fotografias da inauguração. Fotografias, várias; dinheiro que é bom, nem um tostão – segundo parece, a esposa, unha de fome, não permitia. Na capital do Estado alguns se destacaram, à frente de todos o poeta De Matos Barbosa, cujo nome completo, Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, se reduzira a Barbosinha na estima de seus concidadãos, em geral orgulhosos dos versos e da filosofia do ex-funcionário da Prefeitura Municipal de Salvador, do boémio recordado nas mesas dos cafés que, aliás, já não existem.
Naquele fim-de-semana em Sant’Ana do Agreste, Tieta morreu e foi enterrada em meio à consternação geral. Não se faltará à verdade dizendo-se que toda a gente da cidadezinha participou do prematuro velório. A notícia atravessou os portões da Fazenda Tapitanga, tirou o coronel Artur do sossego dominical, trazendo-o aflito às ruas de Agreste. O rebanho de Zé Esteves só prosperara enquanto Tieta, meninota, dele se ocupou. Cabras gordas e parideiras.
Lágrimas e orações, tristeza e ameaças, compaixão e elogios, projectos e comentários, gente a apresentar pêsames. Alguns, rancorosos, mal escondendo a satisfação de ver chegada ao fim a imerecida boa vida de Zé Esteves, de cujo passado de enrolão maldoso e salafrário guardavam memória e cicatrizes.
- Na dependência de Perpétua, ele vai roer boca de sino…
- É o que tu pensa… agora é que o filho da puta vai se encher de grana, não há justiça na terra…
- Troque em miúdos.
- A família vai herdar um dinheirão, metade é dele.
- Velhas comadres, xeretas de idade indefinível, esquecidas pela morte que só de raro em raro dá-se à pena de passar por aqueles cafundós, desenterraram do profundo esquecimento onde jaziam sepultados os desplantes e pecados da moça Tieta, de tampos comidos.
- Ainda me lembro da surra. Naquele tempo o Velho morava na praça, perto da gente. Foi quase de manhã. Quebrou o pau com vontade.
- Também, aqui para nós, ela fez por merecer. Desavergonhada, escandalosa. Até homem casado.
- Veja a cara de seu Barbosinha, é um desgosto só.
- Dizem que não se casou pensando nela.
- Será? É bem capaz. E essa história da herança, que é que vocês sabem?
- Psiu! Lá vem Perpétua.
Caras de enterro, olhos lamurientos seguindo Perpétua no caminho do adro. O busto empinado, um pente negro de espanhola enfiado no alto do coque – não o usava desde a morte do Major, presente dele – o mesmo vestido dos funerais do marido, contudo parece mais moça do que aquela jovem de vinte e poucos anos, já velha de mantilha negra, já solteirona e carola apesar da pouca idade, a beata mais beata, a xereta mais xereta, indo xeretar da irmã ao pai: todas as noites pula a janela, vai encontrar o caixeiro-viajante na beira do rio. Todo o mundo fala, nos cobre de vergonha.
Andam para Perpétua, cercam-na, num coro de louvores à falecida, filha e irmã admirável a ajudar a família e agora a enriquecê-la. Quantas missas vai mandar dizer pela alma dela? Pelos pecados antigos, em parte certamente perdoados por Deus, resgatados em vida de decência e caridade.
Mesmo as mais obstinadas a recordar malfeitos reconhecem os atributos de coração, bondade e gentileza, o riso alegre, o prazer em ajudar, sem falar na graça e na formosura, rosto angelical, corpo, ai, de requebro e dengue. Dona Milú resume tudo numa frase:
- Nunca fez nada por mal e o bem que fez não tem medida.
A boa filha, aquela que, sem guardar rancor, fora o amparo dos pais e das irmãs, sendo a mãe apenas madrasta e a irmã mais moça apenas meia-irmã, o que torna ainda mais meritório o procedimento, mais valiosa cada moeda.
Tudo isso vindo de São Paulo, da grande metrópole, onde Antonieta triunfara, com marido rico e ilustre, industrial, comendador, paulista de quatrocentos anos, dinheiro à farta, à la godaça. Elevando o nome de Sant’Ana do Agreste.
Um filho da terra chegara a possuir padaria em Cascadura e, recordando a cidade natal e a santa padroeira, baptizou-a de Panificação Sant’Ana do Agreste; enviou aos parentes fotografias da inauguração. Fotografias, várias; dinheiro que é bom, nem um tostão – segundo parece, a esposa, unha de fome, não permitia. Na capital do Estado alguns se destacaram, à frente de todos o poeta De Matos Barbosa, cujo nome completo, Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, se reduzira a Barbosinha na estima de seus concidadãos, em geral orgulhosos dos versos e da filosofia do ex-funcionário da Prefeitura Municipal de Salvador, do boémio recordado nas mesas dos cafés que, aliás, já não existem.
De crónica ainda mais extensa, o comandante Dário de Queluz, cujo amor ao clima de Agreste e à paisagem de Mangue Seco o fizera abandonar a Marinha de Guerra para vir instalar-se de vez e para sempre na terra onde nascera, trazendo com ele a esposa, dona Laura, robusta gaúja logo adaptada aos costumes locais. Vive o casal mais na Toca da Sogra, casinhola plantada entre coqueiros ao lado das dunas de Mangue Seco, do que no pequeno bangalô da cidade onde se acumulam máscaras, barcos, santos, animais, peças esculpidas a canivete nas cascas de coco seco ou em pedaços de coqueiros. Como se não lhe bastasse a patente, a condição invejável de militar, a saga das viagens – até no Japão esteve – acumula sucessos de artesão, a admiração geral, um artista de mão cheia. Ele e Barbosinha, os dois primeiros. Falando de cultura, talvez devêssemos acrescentar o nome de dona Carmosina Sluizer da Consolação, o que ela sabe é demais; nunca saiu, porém, de Agreste a não ser em rápidas idas a Esplanada. Falta-lhe o verniz das cidades grandes, da vida metropolitana. Não deve ser esquecido, entre os ilustres a triunfar lá fora, o Dr. José Augusto de Faria, farmacêutico em Aracajú. E terminou-se a lista, pois Ascânio Trindade não chegou a se formar, deixando a Faculdade de Direito no segundo ano.
Ninguém, nenhum deles, poeta, militar, farmacêutico, dono de padaria no Rio de Janeiro, voou tão alto, teve êxito igual, elevando aos paramos da glória o nome da obscura e decadente cidadezinha de Sant’Ana do Agreste, como Antonieta Esteves a brilhar na alta sociedade paulista, única entre todos a ostentar fortuna, gastando dinheiro a rodo, o nome nos jornais do sul.
Aminthas, Osnar, Seixas e Fidélio, os tacos em repouso.:
- Como é mesmo o nome do marido? Matarazo?
- Nada disso, um nome tradicional, quatrocentão, Perpétua sabe
- Prado, talvez.
- Não, parece que são dois nomes, desses importantes.
- Astério vai lavar a égua… dinheirama retada.
Paulista sem preconceitos, casou com moça furada. Os costumes mudam de lugar para lugar; em Agreste e circunvizinhanças ainda hoje moça para casar deve ser virgem – e ainda assim raras casam pois os homens emigram em busca de trabalho, restando para as mulheres a igreja, a cozinha, as colchas de retalho, o croché, os dias longos, as perturbadas noites.
No Rio e em São Paulo, porém, casamento já não exige virgindade, obsoleto prejuízo. Aliás, a moda se faz nacional, estende-se país afora, a pílula esconde o rombo. Não chegou, porém, às margens do rio Real; houvesse Tieta permanecido no Agreste, nunca arranjaria marido. Mas, em São Paulo quem liga para os três vinténs das moças?
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