quinta-feira, janeiro 22, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nª 27

DA RESSURREIÇÃO E DO LUTO


Tieta ressuscitou na terça-feira, às cinco e vinte da tarde, e somente então a família falou em luto. Na preocupação com os problemas resultantes da falta do cheque e das possibilidades de herança, não houvera tempo. Nem necessidade. Morreu, acabou-se. De que lhe serviria roupa treta dos parentes? Missa, sim, pelo descanso da alma. De sétimo dia, com certeza. De mês, caso a dinheirama se confirmasse.

Na terça-feira a marinete atrasou: dois pneus furados, o motor pifando a cada cinco quilómetros, nada além do costumeiro. Assim, só de tardezinha dona Carmosina abriu a mala do Correio.

Na mesma viragem, Perpétua regressou de Esplanada para onde fora na véspera, na companhia de Ricardo que ali tomou o ônibus para Aracajú.

O juiz a recebera após o jantar e ao final da conversa felicitou-a pelo empenho em defesa dos interesses dos filhos, do pai e da irmã. Para mim não quero nada, Meritíssimo, mas pelo direito dos meus filhos e de minha irmã e do meu velho pai brigo até morrer. Pobre, sozinha e desprendida. O juiz se impressionou e dona Guta, empolgada, serviu à corajosa viúva bolo de aipim e licor de pitanga.

De volta, Perpétua trouxe volumosa bagagem de conhecimentos e conselhos. Em São Paulo, informara o juiz, ela encontraria facilmente advogado disposto a se ocupar da causa, financiando-lhe as despesas, à base de participação nos lucros obtidos, se a questão, como parecia, oferecesse reais possibilidades de vitória. Cobram percentagem elevada, naturalmente. Quantos por cento? Não saberia dizer com exactidão: talvez quarenta, cinquenta por cento. Tanto? Um despropósito, doutor! Minha cara senhora, para correr o risco, botar dinheiro no fogo, pedem caro, é justo. Os jornais do sul publicam anúncios de escritórios de advocacia que trabalham nessas bases. Existem, inclusive, especialistas em causas perdidas, mas a percentagem em tais casos sobe a setenta, oitenta por cento.

Doutor Rubim releu a notícia do recorte da Folha da Manhã. Os Almeida Couto, gente graúda, minha senhora, de nata, muito dinheiro e muitos brasões. Se os dados da questão estiverem correctos, tal como a senhora afirma, trata-se de causa ganha. O mais provável é que nem causa venha a haver, logo se chegue a acordo, gente desse porte não ama ver-se imiscuída em trincas na Justiça. A senhora e sua família precisam apenas de um bom advogado. Deus lhe pagará, Meritíssimo, o tempo perdido com uma pobre viúva, sua criada às ordens. De volta, acertará com o Velho e Astério a divisão das despesas da viagem: deixará Pêro com Elisa, levando Ricardo, cujas férias começarão daí a uma semana. Em Esplanada averiguara os preços das passagens de ônibus para São Paulo, embarcaria em Feira de Sant’Ana. Nem o preço, as despesas, a distância, nem os perigos da grande cidade, nada a amedronta. Não chegara a ir a Salvador com o Major como haviam programado; Perpétua sente um aperto no coração ao recordar o projecto. Mas não viajou sozinha a Aracajú para falar com o bispo, agradecer a matrícula de Ricardo? Fora e depois voltara várias vezes, onde o perigo?

São Paulo é maior, capital mais desenvolvida, mas não pode ser muito maior nem muito mais assustadora, Aracajú é um colosso.

Encontrava-se Perpétua ainda no banho, tentando limpar-se da poeira quando dona Carmosina abriu a sacola das cartas registadas. Havia apenas uma, a de Antonieta. Num brado de aleluia, dona Carmosina abandonando o resto da remessa, saiu, porta fora, desabalada para a casa de Elisa, a carta na mão, bandeira desfraldada ao vento:

- Chegou, Elisa, chegou!

- Deus seja louvado!

Abriram o envelope, lá estavam o cheque e novidades sensacionais: houvera morte, sim, não existe fumaça sem fogo. Mas quem morrera fora o Comendador e não era nenhum Almeida Couto de quatrocentos anos e brasões. Nem por isso menos rico industrial paulista, Comendador Felipe Cantarelli, meu inesquecível esposo, quase um pai, cujo passamento me deixa viúva inconsolável.

Para consolar-se, rever a família e, quem sabe, adquirir uma casa, terreno na praia, de preferência nas imediações de Mangue Seco – no futuro viria a curtir velhice e esperar a morte na doçura do clima de Agreste – Antonieta anuncia próxima chegada. Avisarei com tempo e levarei comigo Leonora, minha enteada, filha do primeiro matrimónio de Felipe.

- Ela vai vir, Carmosina! Ela vai vir, que coisa boa! – também Elisa ressuscita.

Convocados às pressas, acorreram todos: o pai e Tonha, Astério vindo do bar acompanhado pela turma solidária, Perpétua trazendo Peto pela orelha.

Como se fosse o chefe da família, dona Carmosina, de pé, solene, declamou a carta, Astério apoderou-se do cheque para descontá-lo.

Enquanto ouvia, Perpétua engolia informações e conselhos de juiz, a viagem a São Paulo, a herança; com Antonieta viva, viúva milionária, mudara a situação, cabia adaptar-se.
Perpétua ergueu-se das cinzas e fitando a família reunida, comandou:

- Fosse quem fosse, o falecido era nosso parente, genro, cunhado e tio. Devemos mandar dizer missa por sua alma e botar luto. Quando nossa querida irmã chegar, deve nos encontrar vestidos de negro, sofrendo com ela. Eu sei o que ela está passando, conheço a dor da viuvez.

Dona Carmosina não conhece mas pode imaginar. Virar a perna na cama de casal, à noite, e não encontrar o apoio do corpo do marido, do homem antes a compartilhar do leito, solidão medonha, ai! Maior só a solidão da solteirona, dor sem tamanho, nem sequer a recordação da gostosura.

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