Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 22
DO SENSACIONAL ENCONTRO ENTRE PERPÉTUA E CARMOSINA, COM CERTA VANTAGEM PARA A PRIMEIRA NO ROUND INICIAL
- Quem disse foi Dr. Almiro? Ele sabe. Eu nunca havia pensado nisso… - Astério se anima, aplacam-se as dores, diminui o mal-estar, presta atenção à conversa.
Estirado na espreguiçadeira, não fosse a presença da cunhada e de dona Carmosina estaria na cama, enrolado nos lençóis; vem passando mal desde a hora em que Elisa lhe fez sinal na loja e ele soube: nem carta nem cheque.
Doente a ponto de nem tocar no cuscuz, na banana frita, contentando-se com uma xícara de café com leite, pão e requeijão. Contracções no estômago, insuportáveis.
Perpétua chegara pouco antes das sete. Deixara Ricardo preparando os deveres, na segunda-feira, o moço retornará ao seminário para as provas escritas e orais. As aulas terminadas, estando padre Mariano de passagem em Aracajú, trouxera o afilhado para o fim-de-semana em casa, com a obrigação de fazer banca, de estudar para os exames. Uma reprovação custar-lhe ia a gratuidade do curso, adverte mais uma vez Perpétua antes de sair. Quanto a Peto, fugira para o cinema, menino endemoninhado. Assistia cada filme três vezes, todas de graça, ajudava o árabe Chalita na bilheteira. Em Agreste, a censura não vigora, todas as películas são livres de qualquer idade, mães amamentam crianças de colo em plena sala, onde Peto, aos treze anos incompletos, aprende mais do que Ricardo, quase com dezassete nas aulas do seminário.
No cinema, na beira do rio onde passa parte do dia a pescar e a observar, no Bar dos Açores torcendo, à tarde pelo tio Astério. Osnar, quando ganha oferece-lhe guaraná, sorvete, coca-cola. Peto já sabe manejar o taco. Debochado, Osnar:
- E o taco aí de baixo, Sargento Peto, já faz carambola? Tá chegando a idade de perder o cabaço…
Nem bem Perpétua tomara assento na cadeira de palha, a melhor da casa, ressoaram na porta as palmas e o sonoro com licença de dona Carmosina. Perpétua fechou a cara: que perdera ali de tão precioso a agente dos Correios para abandonar a sessão de cinema do sábado, compromisso sagrado? Vinha meter o bico onde não a chamavam, ditar razões, palpitar, exibir inteligência e astúcia, a sabichona. Elisa precipitara-se a acolher a amiga:
- Você chegou quase junto com Perpétua.
Sem esperar convite, dona Carmosina puxou o assunto, tomando a frente da conversa:
- Na rua, não se fala noutra coisa. Fui chegando em casa e Mãe foi perguntando: que é que aconteceu com Antonieta? Ouvi dizer que ela morreu. Ninguém sabe de nada, lhe respondi, só que carta e dinheiro que ela remete todo o mês, esse mês não chegou. Mãe arregalou os olhos: Não chegou?
Então ela morreu, só morta havia de deixar de cumprir obrigação. Conheci muito essa menina, quando tomava uma determinação, não havia conselho, ameaça, castigo que lhe mudasse o pensamento. Pode escrever: parou de mandar dinheiro é porque morreu. Vá lá, minha filha, e apresente os meus pêsames. – Uma pausa, dona Carmosina acrescenta: - O zunzum na rua só faz aumentar.
A intrometida viera de propósito, preferindo a conversa ao cinema; é capaz de Elisa ter pedido para ela vir, Perpétua tocou com os dedos o crucifixo do terço, no bolso da saia negra, contendo-se. Deixa para lá, talvez até seja de ajuda; a antipática passa o dia sem fazer nada, a ler revistas e jornais, artigos enormes, domina uma quantidade de assuntos, bota banca. Perpétua, não tinha dúvidas:
- Bateu a caçoleta! Disse a Elisa desde ontem, ela é que se quer enganar e enganar os outros…
- Esconder a evidência… - ilustrou dona Carmosina.
Tais demonstrações de sapiência, Perpétua não as tolera. Dominou-se devido ao grito de Astério, lançado do fundo da espreguiçadeira: - Ai! Vocês estão dizendo que ela morreu? Que Antonieta morreu? É isso?
Elisa teve pena do marido, o pobre de Deus recebera um choque; até ali a possibilidade da morte da cunhada não lhe ocorrera. Pensara em carta extraviada, em dificuldades momentâneas de dinheiro – também os ricos têm os seus apertos – em viagem, plausível explicação de Elisa. Em doença e morte, jamais. A afirmação caiu sobre ele como uma tonelada de chumbo.
- Ai! – gemeu, apertando o estômago, no rosto uma careta de dor.
- Você é o único em Agreste que não sabe que ela morreu e sua mulher a única a duvidar… - a voz sibilante de Perpétua resolvendo a chaga.
Dona Carmosina voltou ao debate:
- A bem dizer, provas não existem. Suposições, sim.
Dura adversária, Perpétua atirou-lhe na cara a munição de dona Milú:
- Que outra prova você quer, além da falta de cartas? Não ouviu o que sua mãe disse? Era assim mesmo: quando Antonieta decidia fazer uma coisa, fazia até ao fim, quem bem sabe sou eu.
- Não há dúvida… – concordou, em termos, dons Carmosina: - Suposições apoiadas em factos concretos, porém suposições…
- Estamos desgraçados! – gemeu Astério, dando-se conta da enormidade do acontecimento: - Como vai a gente viver, se ela morreu?
Contendo o choro, Elisa trouxe um comprimido e um copo de água:
- Tome Astério, o remédio para o estômago…
- Que vai ser da gente? – o comprimido caiu da mão de Astério, Elisa e dona Carmosina a procurarem pelo chão de tijolos, encontraram. Elisa o põe na boca do marido, dá-lhe água.
- Nem para remédio vai sobrar – conclui Astério num engulho.
Dona Carmosina balançou a cabeça, concordando: não será fácil. Não tanto para Perpétua, possui casa de aluguel e dinheiro guardado, mas Elisa e Astério vivem da loja mal sortida, das vendas aos sábados, lucro minguado.
Dona Carmosina tentou deixar de lado esses detalhes, insignificantes diante do facto maior da morte de Tieta, amiga de infância e adolescência, cujas confidências ouvira há tantos anos. Insignificantes? Não com o preço actual do ruge e do batom, do rímel e do esmalte, das revistas, cinco por semana – e Elisa esquecera de pagar as de hoje. Falara em pegar o dinheiro, não pagara. Se a morte se confirmar, dona Carmosina não poderá cobrar, carregará com o prejuízo. Amizade prova-se nessas horas.
Mas eis que Perpétua ergue o busto, o coque parece crescer no alto da cabeça, a voz fanhosa ganha força:
- Ela morreu e nós somos seus herdeiros…
A tal história da herança, dona Carmosina liga todas as antenas. Astério, nas vascas da agonia, não entende:
- O que é que você disse? Herdeiros? Como?
Tempo suficiente para dona Carmosina consultar seus conhecimentos jurídicos e entrar de advogada:
- Hum! É capaz que você tenha razão. Casada mas sem filhos… os parentes herdam… Já li sobre isso, deixe-me ver…
Superior, Perpétua pôs em pratos limpos:
- Outro dia conversei com doutor Almiro, quando ele esteve aqui por causa da herança de seu Lito. Metade para o marido, metade para os parentes próximos. Pai, mãe, irmãos. Nem que o morto não queira.
Foi nessa altura da conversa que se aplacaram as dores de Astério, diminuiu o mal-estar do estômago, rogou confirmação:
- Quem disse foi doutor Almiro? Ele sabe.
- Quem disse foi Dr. Almiro? Ele sabe. Eu nunca havia pensado nisso… - Astério se anima, aplacam-se as dores, diminui o mal-estar, presta atenção à conversa.
Estirado na espreguiçadeira, não fosse a presença da cunhada e de dona Carmosina estaria na cama, enrolado nos lençóis; vem passando mal desde a hora em que Elisa lhe fez sinal na loja e ele soube: nem carta nem cheque.
Doente a ponto de nem tocar no cuscuz, na banana frita, contentando-se com uma xícara de café com leite, pão e requeijão. Contracções no estômago, insuportáveis.
Perpétua chegara pouco antes das sete. Deixara Ricardo preparando os deveres, na segunda-feira, o moço retornará ao seminário para as provas escritas e orais. As aulas terminadas, estando padre Mariano de passagem em Aracajú, trouxera o afilhado para o fim-de-semana em casa, com a obrigação de fazer banca, de estudar para os exames. Uma reprovação custar-lhe ia a gratuidade do curso, adverte mais uma vez Perpétua antes de sair. Quanto a Peto, fugira para o cinema, menino endemoninhado. Assistia cada filme três vezes, todas de graça, ajudava o árabe Chalita na bilheteira. Em Agreste, a censura não vigora, todas as películas são livres de qualquer idade, mães amamentam crianças de colo em plena sala, onde Peto, aos treze anos incompletos, aprende mais do que Ricardo, quase com dezassete nas aulas do seminário.
No cinema, na beira do rio onde passa parte do dia a pescar e a observar, no Bar dos Açores torcendo, à tarde pelo tio Astério. Osnar, quando ganha oferece-lhe guaraná, sorvete, coca-cola. Peto já sabe manejar o taco. Debochado, Osnar:
- E o taco aí de baixo, Sargento Peto, já faz carambola? Tá chegando a idade de perder o cabaço…
Nem bem Perpétua tomara assento na cadeira de palha, a melhor da casa, ressoaram na porta as palmas e o sonoro com licença de dona Carmosina. Perpétua fechou a cara: que perdera ali de tão precioso a agente dos Correios para abandonar a sessão de cinema do sábado, compromisso sagrado? Vinha meter o bico onde não a chamavam, ditar razões, palpitar, exibir inteligência e astúcia, a sabichona. Elisa precipitara-se a acolher a amiga:
- Você chegou quase junto com Perpétua.
Sem esperar convite, dona Carmosina puxou o assunto, tomando a frente da conversa:
- Na rua, não se fala noutra coisa. Fui chegando em casa e Mãe foi perguntando: que é que aconteceu com Antonieta? Ouvi dizer que ela morreu. Ninguém sabe de nada, lhe respondi, só que carta e dinheiro que ela remete todo o mês, esse mês não chegou. Mãe arregalou os olhos: Não chegou?
Então ela morreu, só morta havia de deixar de cumprir obrigação. Conheci muito essa menina, quando tomava uma determinação, não havia conselho, ameaça, castigo que lhe mudasse o pensamento. Pode escrever: parou de mandar dinheiro é porque morreu. Vá lá, minha filha, e apresente os meus pêsames. – Uma pausa, dona Carmosina acrescenta: - O zunzum na rua só faz aumentar.
A intrometida viera de propósito, preferindo a conversa ao cinema; é capaz de Elisa ter pedido para ela vir, Perpétua tocou com os dedos o crucifixo do terço, no bolso da saia negra, contendo-se. Deixa para lá, talvez até seja de ajuda; a antipática passa o dia sem fazer nada, a ler revistas e jornais, artigos enormes, domina uma quantidade de assuntos, bota banca. Perpétua, não tinha dúvidas:
- Bateu a caçoleta! Disse a Elisa desde ontem, ela é que se quer enganar e enganar os outros…
- Esconder a evidência… - ilustrou dona Carmosina.
Tais demonstrações de sapiência, Perpétua não as tolera. Dominou-se devido ao grito de Astério, lançado do fundo da espreguiçadeira: - Ai! Vocês estão dizendo que ela morreu? Que Antonieta morreu? É isso?
Elisa teve pena do marido, o pobre de Deus recebera um choque; até ali a possibilidade da morte da cunhada não lhe ocorrera. Pensara em carta extraviada, em dificuldades momentâneas de dinheiro – também os ricos têm os seus apertos – em viagem, plausível explicação de Elisa. Em doença e morte, jamais. A afirmação caiu sobre ele como uma tonelada de chumbo.
- Ai! – gemeu, apertando o estômago, no rosto uma careta de dor.
- Você é o único em Agreste que não sabe que ela morreu e sua mulher a única a duvidar… - a voz sibilante de Perpétua resolvendo a chaga.
Dona Carmosina voltou ao debate:
- A bem dizer, provas não existem. Suposições, sim.
Dura adversária, Perpétua atirou-lhe na cara a munição de dona Milú:
- Que outra prova você quer, além da falta de cartas? Não ouviu o que sua mãe disse? Era assim mesmo: quando Antonieta decidia fazer uma coisa, fazia até ao fim, quem bem sabe sou eu.
- Não há dúvida… – concordou, em termos, dons Carmosina: - Suposições apoiadas em factos concretos, porém suposições…
- Estamos desgraçados! – gemeu Astério, dando-se conta da enormidade do acontecimento: - Como vai a gente viver, se ela morreu?
Contendo o choro, Elisa trouxe um comprimido e um copo de água:
- Tome Astério, o remédio para o estômago…
- Que vai ser da gente? – o comprimido caiu da mão de Astério, Elisa e dona Carmosina a procurarem pelo chão de tijolos, encontraram. Elisa o põe na boca do marido, dá-lhe água.
- Nem para remédio vai sobrar – conclui Astério num engulho.
Dona Carmosina balançou a cabeça, concordando: não será fácil. Não tanto para Perpétua, possui casa de aluguel e dinheiro guardado, mas Elisa e Astério vivem da loja mal sortida, das vendas aos sábados, lucro minguado.
Dona Carmosina tentou deixar de lado esses detalhes, insignificantes diante do facto maior da morte de Tieta, amiga de infância e adolescência, cujas confidências ouvira há tantos anos. Insignificantes? Não com o preço actual do ruge e do batom, do rímel e do esmalte, das revistas, cinco por semana – e Elisa esquecera de pagar as de hoje. Falara em pegar o dinheiro, não pagara. Se a morte se confirmar, dona Carmosina não poderá cobrar, carregará com o prejuízo. Amizade prova-se nessas horas.
Mas eis que Perpétua ergue o busto, o coque parece crescer no alto da cabeça, a voz fanhosa ganha força:
- Ela morreu e nós somos seus herdeiros…
A tal história da herança, dona Carmosina liga todas as antenas. Astério, nas vascas da agonia, não entende:
- O que é que você disse? Herdeiros? Como?
Tempo suficiente para dona Carmosina consultar seus conhecimentos jurídicos e entrar de advogada:
- Hum! É capaz que você tenha razão. Casada mas sem filhos… os parentes herdam… Já li sobre isso, deixe-me ver…
Superior, Perpétua pôs em pratos limpos:
- Outro dia conversei com doutor Almiro, quando ele esteve aqui por causa da herança de seu Lito. Metade para o marido, metade para os parentes próximos. Pai, mãe, irmãos. Nem que o morto não queira.
Foi nessa altura da conversa que se aplacaram as dores de Astério, diminuiu o mal-estar do estômago, rogou confirmação:
- Quem disse foi doutor Almiro? Ele sabe.
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