Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº29
ONDE O AUTOR REDIGE CONCISA NOTÌCIA SOBRE O PRÓSPERO E LONGÍNQUO PASSADO DO MUNICÍPIO DE SANTANA DO AGRESTE E SUA DECADÊNCIA ACTUAL
Enquanto o povo comenta a excitante nova do próximo retorno da filha pródiga, as beatas na Igreja, os ociosos no bar, os comentários fervendo, a Agência dos Correios engalanada em festa, aproveito para constatar desde logo a benéfica influência de Tieta.
Ainda na rodagem para a Baía e já influindo no burgo natal, retirando-o do marasmo no qual mergulhara havia tantos anos.
A notícia não atinge e comove somente a população urbana; espalha-se por todo o município, despertando curiosidade e interesse das mansas margens do rio às encapeladas vagas do mar atlântico, segundo revela Barbosinha em estado de poesia. Elabora um poema em versos livres e ático sabor, onde Vénus surge das ondas, nua, coberta de espumas e conchas, rediviva. Actualíssimo e um tanto erótico.
Ninguém ficou indiferente em toda a população de alguns milhares de pessoas – nem mesmo dona Carmosina pode fornecer o número exacto de habitantes do Agreste; no censo de 1960 somavam nove mil, setecentos e quarenta e dois cidadãos prestáveis e imprestáveis pois vários passavam dos noventa e muitos dos oitenta anos; no último lustre após o recenseamento, a população diminuíra, não em consequência de mortes, ainda mais raras que os nascimentos e sim da sistemática partida de jovens em busca de oportunidades noutras terras.
O visitante, chegado a estas ruas mortas nos dias de hoje, exausto com a travessia de marinete de Jairo, entupido de poeira, hóspede da pensão de dona Amorzinho, não acreditará que, antes da construção da estrada de ferro ligando Baía a Sergipe, Agreste foi terra de muito progresso e muito movimento comercial, entreposto da maior importância para todo o serão dos dois Estados.
Naquela época, a prosperidade presidia os destinos do actual cafundó de Judas. A situação privilegiada do município, às margens do rio, estendendo-se até o mar, fizera de Santana do Agreste o centro de abastecimento de toda uma enorme região. Navios e escunas vinham até à altura da barra de Mangue Seco, paravam ao largo, as alvarengas recolhiam a carga. De Agreste, no lombo dos burros, as mercadorias partiam no rumo do sertão.
Hoje, existe apenas a pensão de dona Amorzinho, no começo do século existiam para mais de dez, repletas sempre de comerciantes e caixeiros-viajantes, as lojas e armazéns não davam abasto à freguesia. Casa de mulher-dama nem se conta, uma animação, um correr de dinheiro. As melhores residenciais da cidade datam dessa época, também o calçamento de pedras da Praça da Matriz e das ruas do centro. Os ricos mandavam vir pianos e gramofones, encomendavam retratos coloridos a firmas do sul, para pendurar nas paredes das salas. Construíram o sobrado da Intendência. Ergueram a nova Matriz de Sant’Ana, deixando a velha capela para a devoção de São João Batista, cuja festa em Junho, precedida pela de Santo António e seguida pela de São João Pedro, trazia a Agreste forasteiros até de Sergipe, além dos numerosos estudantes em férias, libertos por quinze dias dos internatos da capital.
Agreste em Junho era uma alegria, só dança e foguetório todas as noites, após as trezenas e novenas.
Das primeiras cidades a instalar electricidade, das últimas a conservar a vacilante luz amarela e fraca do cansado motor, ainda não substituído pela ofuscante luz da usina de Paulo Afonso. Quem adquiriu o motor e iluminou o então florescente burgo foi o intendente coronel Francisco Trindade, avô de Ascânio. Deve-se ao neto, em dias recentes obstinada luta para trazer até ali os fios de alta – voltagem da Hidroeléctrica de São Francisco que, como a estrada de ferro e a rodovia, haviam passado longe dos limites do município.
Nos últimos decénios, o progresso só fizera desfechar golpes contra Agreste. O primeiro, o mais terrível: a construção da estrada de ferro, trilhos a ligar a capital baiana a Sergipe, chegando às ribanceiras do rio São Francisco, em Propriá; deixando nossa cidadezinha à margem, órfã de trem – de-ferro e de estação onde as moças namorarem. Tentou manter-se Agreste no convívio dos navios e escunas mas o transporte de mercadorias fez-se mais fácil e muito mais barato nos vagões da ferrovia. Dispersaram-se as tropas de burros, as alvarengas apodreceram junto aos mangues, de raros navios e escunas desembarca apenas contrabando e mesmo assim sem outro lucro para Agreste além da paga recebida pelos pescadores de Mangue Seco, pois não é do município que os géneros tomam destino. As lanchas nem escalam em Agreste, indo directas para o porto do Crasto, em Sergipe. Só Elieser, morador na cidade, ali ancora, de volta da entrega, vem dormir a casa. Não se pode considerar comércio digno de tal nome a garrafa de uísque escocês, de gim inglês, de conhaque espanhol que Elieser surripia e vende a Aminthas, a Seixas ou a Fidélio; nem o vidro de perfume com destino certo: Carol, a retraída moça de Cardoso Pires.
Essa moça, aliás, precisa de aparecer mais nas páginas deste folhetim para proveito e gáudio de todos nós.
As esperanças de retorno à prosperidade concentrara-se durante longo tempo na rodagem, anunciada com ruidoso espalhafato, a vir do sul cruzando o país inteiro pela costa.
Enquanto isso, Agreste diminuíra a olhos vistos, os caixeiros-viajantes desertaram das ruas: restando poucas lojas e armazéns, os pedidos não pagavam as custas da viagem. Fecharam-se as pensões, já ninguém vinha de longe para as festas de Junho, apesar da água continuar a fazer milagres, do clima manter-se digno de sanatório, da insólita beleza ribeirinha e da audácia da praia de Mangue Seco, incomparável.
A rodovia, como se sabe passou a quarenta e oito quilómetros de poeira e lama. Novo e definitivo golpe do progresso, Agreste entregou-se de vez, reduzido à mandioca e às cabras. Nem trem de ferro, nem caminhões nem sombra de estação, rodoviária ou ferroviária, onde as moças namorarem. No ancoradouro, meia dúzia de canoas, o barco de Pirica, a lancha de Elieser e os caranguejos, gordos, gordíssimos. Em matéria de comida, nada se compara a um escaldado de caranguejo com pirão de farinha de mandioca, verde-escuro, pirão de lama como se chama aqui. Nunca comeram? Uma lástima, não sabem o que é bom. Manjar a exigir tempo e paciência para catar a carne a carne dos caranguejos, pata por pata, faz-se raro até mesmo em Agreste onde sobram o tempo e o gosto. Mas vale a pena, eu asseguro. É de se lamber os dedos; come-se com a mão, ensopando o pirão na gordura verde do molho, na lama incomparável do caranguejo.
O povo já perdeu as derradeiras esperanças, os moços partem na marinete de Jairo, moços e moças, porque nos últimos anos também as mulheres começaram a buscar vida melhor em terras mais ricas. Vão ser copeira ou cozinheira, costureira ou bordadeira, grande número acaba na zona, em Salvador, em Aracajú, em Feira de Santana. Muito apreciadas, por sinal.
Enquanto o povo comenta a excitante nova do próximo retorno da filha pródiga, as beatas na Igreja, os ociosos no bar, os comentários fervendo, a Agência dos Correios engalanada em festa, aproveito para constatar desde logo a benéfica influência de Tieta.
Ainda na rodagem para a Baía e já influindo no burgo natal, retirando-o do marasmo no qual mergulhara havia tantos anos.
A notícia não atinge e comove somente a população urbana; espalha-se por todo o município, despertando curiosidade e interesse das mansas margens do rio às encapeladas vagas do mar atlântico, segundo revela Barbosinha em estado de poesia. Elabora um poema em versos livres e ático sabor, onde Vénus surge das ondas, nua, coberta de espumas e conchas, rediviva. Actualíssimo e um tanto erótico.
Ninguém ficou indiferente em toda a população de alguns milhares de pessoas – nem mesmo dona Carmosina pode fornecer o número exacto de habitantes do Agreste; no censo de 1960 somavam nove mil, setecentos e quarenta e dois cidadãos prestáveis e imprestáveis pois vários passavam dos noventa e muitos dos oitenta anos; no último lustre após o recenseamento, a população diminuíra, não em consequência de mortes, ainda mais raras que os nascimentos e sim da sistemática partida de jovens em busca de oportunidades noutras terras.
O visitante, chegado a estas ruas mortas nos dias de hoje, exausto com a travessia de marinete de Jairo, entupido de poeira, hóspede da pensão de dona Amorzinho, não acreditará que, antes da construção da estrada de ferro ligando Baía a Sergipe, Agreste foi terra de muito progresso e muito movimento comercial, entreposto da maior importância para todo o serão dos dois Estados.
Naquela época, a prosperidade presidia os destinos do actual cafundó de Judas. A situação privilegiada do município, às margens do rio, estendendo-se até o mar, fizera de Santana do Agreste o centro de abastecimento de toda uma enorme região. Navios e escunas vinham até à altura da barra de Mangue Seco, paravam ao largo, as alvarengas recolhiam a carga. De Agreste, no lombo dos burros, as mercadorias partiam no rumo do sertão.
Hoje, existe apenas a pensão de dona Amorzinho, no começo do século existiam para mais de dez, repletas sempre de comerciantes e caixeiros-viajantes, as lojas e armazéns não davam abasto à freguesia. Casa de mulher-dama nem se conta, uma animação, um correr de dinheiro. As melhores residenciais da cidade datam dessa época, também o calçamento de pedras da Praça da Matriz e das ruas do centro. Os ricos mandavam vir pianos e gramofones, encomendavam retratos coloridos a firmas do sul, para pendurar nas paredes das salas. Construíram o sobrado da Intendência. Ergueram a nova Matriz de Sant’Ana, deixando a velha capela para a devoção de São João Batista, cuja festa em Junho, precedida pela de Santo António e seguida pela de São João Pedro, trazia a Agreste forasteiros até de Sergipe, além dos numerosos estudantes em férias, libertos por quinze dias dos internatos da capital.
Agreste em Junho era uma alegria, só dança e foguetório todas as noites, após as trezenas e novenas.
Das primeiras cidades a instalar electricidade, das últimas a conservar a vacilante luz amarela e fraca do cansado motor, ainda não substituído pela ofuscante luz da usina de Paulo Afonso. Quem adquiriu o motor e iluminou o então florescente burgo foi o intendente coronel Francisco Trindade, avô de Ascânio. Deve-se ao neto, em dias recentes obstinada luta para trazer até ali os fios de alta – voltagem da Hidroeléctrica de São Francisco que, como a estrada de ferro e a rodovia, haviam passado longe dos limites do município.
Nos últimos decénios, o progresso só fizera desfechar golpes contra Agreste. O primeiro, o mais terrível: a construção da estrada de ferro, trilhos a ligar a capital baiana a Sergipe, chegando às ribanceiras do rio São Francisco, em Propriá; deixando nossa cidadezinha à margem, órfã de trem – de-ferro e de estação onde as moças namorarem. Tentou manter-se Agreste no convívio dos navios e escunas mas o transporte de mercadorias fez-se mais fácil e muito mais barato nos vagões da ferrovia. Dispersaram-se as tropas de burros, as alvarengas apodreceram junto aos mangues, de raros navios e escunas desembarca apenas contrabando e mesmo assim sem outro lucro para Agreste além da paga recebida pelos pescadores de Mangue Seco, pois não é do município que os géneros tomam destino. As lanchas nem escalam em Agreste, indo directas para o porto do Crasto, em Sergipe. Só Elieser, morador na cidade, ali ancora, de volta da entrega, vem dormir a casa. Não se pode considerar comércio digno de tal nome a garrafa de uísque escocês, de gim inglês, de conhaque espanhol que Elieser surripia e vende a Aminthas, a Seixas ou a Fidélio; nem o vidro de perfume com destino certo: Carol, a retraída moça de Cardoso Pires.
Essa moça, aliás, precisa de aparecer mais nas páginas deste folhetim para proveito e gáudio de todos nós.
As esperanças de retorno à prosperidade concentrara-se durante longo tempo na rodagem, anunciada com ruidoso espalhafato, a vir do sul cruzando o país inteiro pela costa.
Enquanto isso, Agreste diminuíra a olhos vistos, os caixeiros-viajantes desertaram das ruas: restando poucas lojas e armazéns, os pedidos não pagavam as custas da viagem. Fecharam-se as pensões, já ninguém vinha de longe para as festas de Junho, apesar da água continuar a fazer milagres, do clima manter-se digno de sanatório, da insólita beleza ribeirinha e da audácia da praia de Mangue Seco, incomparável.
A rodovia, como se sabe passou a quarenta e oito quilómetros de poeira e lama. Novo e definitivo golpe do progresso, Agreste entregou-se de vez, reduzido à mandioca e às cabras. Nem trem de ferro, nem caminhões nem sombra de estação, rodoviária ou ferroviária, onde as moças namorarem. No ancoradouro, meia dúzia de canoas, o barco de Pirica, a lancha de Elieser e os caranguejos, gordos, gordíssimos. Em matéria de comida, nada se compara a um escaldado de caranguejo com pirão de farinha de mandioca, verde-escuro, pirão de lama como se chama aqui. Nunca comeram? Uma lástima, não sabem o que é bom. Manjar a exigir tempo e paciência para catar a carne a carne dos caranguejos, pata por pata, faz-se raro até mesmo em Agreste onde sobram o tempo e o gosto. Mas vale a pena, eu asseguro. É de se lamber os dedos; come-se com a mão, ensopando o pirão na gordura verde do molho, na lama incomparável do caranguejo.
O povo já perdeu as derradeiras esperanças, os moços partem na marinete de Jairo, moços e moças, porque nos últimos anos também as mulheres começaram a buscar vida melhor em terras mais ricas. Vão ser copeira ou cozinheira, costureira ou bordadeira, grande número acaba na zona, em Salvador, em Aracajú, em Feira de Santana. Muito apreciadas, por sinal.
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