sexta-feira, janeiro 02, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 7


ONDE SE TRAVA CONHECIMENTO COM DONA CARMOSINA, CIDADÃ IMPORTANTE, AGENTE DOS CORREIOS, E SE TEM NOTÍCIA DOS FILHOS DE SEU EDMUNDO PACHECO, COLETOR, COMPENSANDO A FALTA DE CARTA E CHEQUE DE TIETA SOBRE CUJO ESTADO DE SAÚDE CRESCE O PESSIMISMO.



Ainda de longe, antes de transpor a porta dos Correios, Elisa lê, na atitude de Dona Carmosina, a comprovação do que já sabia com certeza: a carta não chegara. Braços caídos, semicerrados os olhos miúdos, o ar grave, a activa funcionária vive, ela também, o drama do inexplicável atraso. Faz-se mais pálida a face de Elisa, os pés de chumbo, a voz inarticulada, quase um gemido:

- Nada?

Cinquentona, sarará, corpulenta, cara larga, a voz rouca, dona Carmosina indica a correspondência do dia, escassa, espalhada no balcão:

- Nada! Hoje não veio nenhuma carta registada. Por via das dúvidas, passei as malas duas vezes, carta por carta. O que chegou está aí, pouca coisa. Ainda não entreguei nada, você é a primeira a aparecer. Vieram jornais e revistas, isso sim, hoje é sábado. – Repara na palidez da amiga: - Quer um pouco de água?

- Não, obrigado. – As palavras saem estranguladas.

- Que demora, hein? Em todos estes anos, nunca atrasou tanto…

- Mais de dez anos… - gemeu Elisa.

- Onze anos e sete meses – corrigiu dona Carmosina, escrupulosa nos detalhes: - Inda me lembro da primeira carta, como se fosse hoje. Quando abri o saco, senti logo o cheiro, naquele tempo ela usava um perfume mais forte do que o de agora, encheu a sala. Que carta será essa? Perguntei a mim mesma e li correndo o subscrito e o nome do remetente. Estava dirigida a seu pai ou a qualquer membro da família Esteves e quem enviava era Antonieta Esteves, Caixa Postal 6211, São Paulo, Capital. Vou buscar água para lhe dar, com esse calorão e nada de carta, coitadinha…

Enquanto de costas, dona Carmosina toma da moringa e enche o copo, Elisa curva-se sobre a correspondência, não por manter esperanças, mas por desencargo de consciência.

- Botei duas gotas de água de flor. Faz bem prós nervos.

Elisa bebe em pequenos goles, dona Carmosina retoma a narrativa:

- O envelope cor-de-rosa, lindo, parece que estou vendo. Pelo falecido seu Lima mandei recado para seu marido na loja, vocês estavam casadinhos de novo. Ele veio com Osnar, entreguei, leu aqui mesmo. Carta mais bonita, pedindo notícias, do pai, das irmãs, como iam de saúde e de vida, se precisavam de ajuda. Até colaborei na resposta, se lembra?

- Me lembro…o major era vivo, foi ele quem escreveu…

- Era burro que nem uma porta mas tinha a letra bonita… Letra dele, redacção minha De lá para cá nunca mais falhou. Todo o mês a carta com o cheque, o rico dinheirinho…

Empolgada, dona Carmosina nem sente o mormaço a entrar pelas duas portas asfixiante. Pensativa a olhar para Elisa:

- Nunca demorou desse jeito… esquisito mesmo.

Elisa percebe, na voz da amiga, inquietante sinal de alarme. Tenta acalmá-la e acalmar-se:

- Uma vez quando ela estava passeando em Buenos Aires…

- Chegou no dia dezassete…dezassete de Fevereiro, exactamente. Hoje estamos a vinte e oito de Novembro. A que você atribui? Doença? – Os olhos pequeninos de dona Carmosina observam Elisa que segura o copo vazio sem receber resposta, o choro preso na garganta.

Felizmente apareceu seu Edmundo, Edmundo Ribeiro, o coletor, enfarpelado, paletó, gravata e chapéu, deseja boa-tarde:

- Alguma coisa para mim Carmosina?

- Duas cartas, uma do filho, outra do genro… - ri com os lábios descorados, divertida: - Aposto que os dois estão pedindo dinheiro…

O coletor recolhe as cartas, olha através dos envelopes contra a luz, que pode impedir que dona Carmosina saiba e comente a visa alheia, não passam por suas mãos (e vistas) telegramas e cartas? Carmosina, quase albina, mais que ladina, voz masculina, língua ferina, doce assassina – declamava Aminthas, seu primo segundo e comensal assíduo. Dona Carmosina é de bom tempero, famosa no pirão de leite e no molho pardo. E o cuscuz de milho?

- Como se eu fosse um saco sem fundo, entupido de dinheiro… - seu Edmundo suspira, sem pressa de abrir os envelopes apesar do desejo de saber dos filhos, Dirige-se a Elisa: - Feliz é Zé Esteves, seu pai, dona Elisa. Tem filha rica que manda em vez de pedir. Comigo é o contrário…

Dona Carmosina relanceia a vista, considera Elisa, informa:

- Este mês a carta de Tieta ainda não chegou. Esquisito, não acha seu Edmundo? Um atraso desses…

O coletor não esconde a surpresa, um dos envelopes aberto:

- Ainda não? Que é que houve dona Elisa?

- Quem sabe seu Edmundo? Para mim ela está viajando, esses passeios que faz todos os anos de navio…

- Cruzeiros marítimos… - esclarece dona Carmosina mas o olhar sob as sobrancelhas ruças exprime dúvida. Seu Edmundo balança a cabeça, não encontra comentário a fazer, retorna à cata do genro.

- Elisa despede-se, uma fraqueza nas pernas que nem Astério:

- Obrigada, Carmosina.

- Agora, querida, só terça-feira. – Para levantar-lhe o ânimo, não deixá-la partir tão por baixo, acrescenta: - Você hoje está uma tetéia. Esse vestido eu ainda não conhecia…

- Foi Tieta que mandou…

Seu Edmundo suspende a leitura da carta, escapa-lhe o desgosto da notícia:

- Suzana está esperando menino outra vez…

Elisa reúne forças:

- Parabéns, seu Edmundo. Quando escrever a Suzi mande um abraço meu…

- O quarto, não é? O senhor ainda tão moço e já cheio de netos. Bonito, acho isso bonito. – A voz rouca de dona Carmosina, sincera ou gozadora?

- Bonito, eu é que sei quanto me custa…falta de juízo.

- Que é caro, lá isso é…Logo agora tão fácil de evitar, com a pílula. Na Baía, se encontra em qualquer farmácia, a venda é livre…até a Igreja já aprova o uso – acentua dona Carmosina,
doce assassina.

Elisa diz até breve, atravessa a feira barulhenta, em direcção à casa de Perpétua. Não sente o peso do olhar do árabe, não lhe alisa a bunda a mirada de nenhum moleque nem lhe fere o ouvido a assobio do mendigo. Doença, insinuara Carmosina, para não falar no pior. Morta sim, Elisa já não duvida, Perpétua sabe o que diz.

Há vinte e três anos na agência dos Correios, dona Carmosina emite julgamentos definitivos sobre pessoas e factos:

- Moça boa e séria está aí, seu Edmundo. Conheço Elisa de menina, sempre direita, cumpridora. Faz tudo no capricho. Trabalhadeira, a casa dela é um brinco e gosta de se vestir, de se arrumar, não é como outras por aí, que vivem no desmazelo. Só que agora, pobrezinha…

Seu Edmundo, para melhor ouvir, interrompe a leitura da carta do filho estudante:

- A que atribui tanta demora?

- Se Tieta não morreu deve estar muito doente. O marido dela bem podia dar notícia mas ele nunca quis conversa com os parentes daqui. Vou aconselhar Elisa ou Perpétua a telegrafar.

De volta à carta o coletor explica:

- Idiota! Só serve para isso…

- O que é que Leléu fez dessa vez, seu Edmundo?

- Pegou numa carga de gonorreia; desculpe, Carmosina, quero dizer blenorragia, e pede dinheiro urgente para médico e remédios…

- Com duas doses de penicilina fica bom. É tiro e queda. Tratamento barato nem precisa de médico.

Dona Carmosina lê os jornais antes de entregá-los, sabe do que vai pelo mundo, entende de cinema, política, ciência. Acumula o cargo nos Correios com a representação de A Tarde, da Baía, de revistas do Rio e de São Paulo.

- Coitada da Elisa, ficou tão transtornada, nem levou as revistas. Depois deixo em casa dela

Separa a carta endereçada a Ascânio Trindade pois o vê do outro lado da rua; carta de Máximo Lira, um amigo da capital, sem interesse. Antigamente, sim, tão romântico: Quando Astrud escrevia cartas de amor e Ascânio em resposta enchia laudas de juras e saudades. Um poeta, Ascânio, pena não escreva versos, seriam lindos. Retorna dona Carmosina ao silêncio de Tieta.

- Quer saber minha opinião, seu Edmundo? Antonieta já não pertence a este mundo. Mortinha da silva.

(continua)

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