Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 9
Ricardo não entende os motivos da discordância, e antes mesmo de condoer-se pela morta, sente pena da tia Elisa, assim desolada igual à imagem de Santa Maria Madalena, num nicho da capela do seminário.
Perpétua não se abala:
- Nunca é cedo demais para pedir um bom conselho. O que está esperando aí, Cardo? Não ouviu o que mandei fazer?
- Já vou, Mãe…
Deseja acrescentar uma palavra condizente com a notícia, o pensamento voltado agora para a tia desconhecida, de morte anunciada e discutida, nome obrigatório em suas orações; não enviava ela dinheiro todos os meses? Quando ingressara no seminário, menino ainda, recebera mandado de São Paulo, um breviário rico, lombada dourada, papel fino, letras de cor, numa caixa de veludo vermelho, coisa mais linda, presente da tia Antonieta para o futuro padre que mal viu e tocou preciosidade tamanha, logo ofertada por Perpétua ao bispo Dom José por intermédio do padre Mariano. A bola de futebol número 5 também fora ela que mandara; às escondidas da mãe, Cardo escrevera uma cartinha à tia pedindo bola e segredo, se mamãe souber arranca meu couro.
Recebeu bola, calção e camisola do Palmeiras. Tinham um segredo em comum, ele e tia Tieta. Levanta a cabeça, enfrenta Perpétua:
- Tomara não seja verdade.
Sai em busca das velas. Já não está alegre e, se não espreme lágrimas, sente um ardor nos olhos, uma espinha nasce-lhe no coração, incómoda como as do rosto. Por sua conta acenderá uma vela aos pés da Virgem e lhe prometerá um rosário de cinco terços, rezado de joelhos sobre grãos de milho, para que a má notícia não se confirme.
Na sala cai o silêncio entre as duas irmãs, sobre as duas e a outra – múltiplas a face e a postura da ausente. Moça formosa e atrevida, enfrentando a ira do pai e a denúncia da irmã; tu tem é inveja porque nenhum homem repara em ti, tribufu; atrevida desde menina, pastora de cabras nos oiteiros da terra safara de Zé Esteves; a saltar, adolescente, a janela nocturna para encontrar-se com homens, o caixeiro-viajante não fora o primeiro, Perpétua tem certeza; audaciosa, desleixada dos preceitos de Deus, igreja só para namorar; a rir tão cínica e bela, na boleia do caminhão, rumo da Baía, indo embora para sempre; irmã rica, esposa de comendador, em São Paulo, a mandar mesada para pai e sobrinhos, merecedora de toda a consideração, esquecido o feio passado, enterrada a louca adolescência, tia presente na oração das crianças, elogiada pelo padre Mariano; fada generosa dos sonhos de Elisa, a feliz e atenta benfeitora, a âncora da esperança; na cidade, exemplo de boa filha e boa irmã, uma zelação, uma lenda, inesgotável assunto.
Perpétua guarda o lenço, cumprido o ritual, pergunta:
- E Astério?
- Passei na loja…sabe que a carta não chegou mas hoje é sábado, não pode sair nem para o almoço. Por falar nisso, vou indo, tenho de mandar a marmita.
- De noite passo em casa de vocês, digo o que o padre aconselhou. Vamos decidir o que fazer.
Elisa, de pé, um soluço a sacode:
- Por que a gente não espera até ao fim do mês?
- Já se esperou até demais. Vamos logo discutir o que fazer. Eu não vou ficar de braços cruzados, não lhe disse? Quero minha parte – Já sem lágrimas, suspiros, lamentações, Perpétua troca o lenço pelo terço. Mais valem as orações.
Elisa gasta o derradeiro argumento:
- Quem sabe, a carta se perdeu no caminho…
- Carta registada não se perde. Nestes anos todos já perdeu alguma? Tolice. Diga a Astério que me espere, nada de bilhar hoje. Com a cunhada morta…
- E o pai?
Perpétua começa a passar as contas do terço:
- Amanhã a gente avisa a ele.
- É capaz de ter uma coisa…
- Quem? O Velho? Vai ficar uma fera, vai querer tomar dinheiro da gente, o mais que puder, isso sim. Se prepare, o tempo das larguezas se acabou.
Ao passar em frente ao corredor, Elisa enxerga ao fundo a chama das velas iluminando os santos no oratório. Uma, pela salvação da morta, aos pés de Cristo crucificado; a outra pela vida da tia, aos pés da Virgem. Ouve a voz do rapazola rezando Salve-Rainha, mãe de misericórdia.
Misericórdia, meu Deus!
Perpétua não se abala:
- Nunca é cedo demais para pedir um bom conselho. O que está esperando aí, Cardo? Não ouviu o que mandei fazer?
- Já vou, Mãe…
Deseja acrescentar uma palavra condizente com a notícia, o pensamento voltado agora para a tia desconhecida, de morte anunciada e discutida, nome obrigatório em suas orações; não enviava ela dinheiro todos os meses? Quando ingressara no seminário, menino ainda, recebera mandado de São Paulo, um breviário rico, lombada dourada, papel fino, letras de cor, numa caixa de veludo vermelho, coisa mais linda, presente da tia Antonieta para o futuro padre que mal viu e tocou preciosidade tamanha, logo ofertada por Perpétua ao bispo Dom José por intermédio do padre Mariano. A bola de futebol número 5 também fora ela que mandara; às escondidas da mãe, Cardo escrevera uma cartinha à tia pedindo bola e segredo, se mamãe souber arranca meu couro.
Recebeu bola, calção e camisola do Palmeiras. Tinham um segredo em comum, ele e tia Tieta. Levanta a cabeça, enfrenta Perpétua:
- Tomara não seja verdade.
Sai em busca das velas. Já não está alegre e, se não espreme lágrimas, sente um ardor nos olhos, uma espinha nasce-lhe no coração, incómoda como as do rosto. Por sua conta acenderá uma vela aos pés da Virgem e lhe prometerá um rosário de cinco terços, rezado de joelhos sobre grãos de milho, para que a má notícia não se confirme.
Na sala cai o silêncio entre as duas irmãs, sobre as duas e a outra – múltiplas a face e a postura da ausente. Moça formosa e atrevida, enfrentando a ira do pai e a denúncia da irmã; tu tem é inveja porque nenhum homem repara em ti, tribufu; atrevida desde menina, pastora de cabras nos oiteiros da terra safara de Zé Esteves; a saltar, adolescente, a janela nocturna para encontrar-se com homens, o caixeiro-viajante não fora o primeiro, Perpétua tem certeza; audaciosa, desleixada dos preceitos de Deus, igreja só para namorar; a rir tão cínica e bela, na boleia do caminhão, rumo da Baía, indo embora para sempre; irmã rica, esposa de comendador, em São Paulo, a mandar mesada para pai e sobrinhos, merecedora de toda a consideração, esquecido o feio passado, enterrada a louca adolescência, tia presente na oração das crianças, elogiada pelo padre Mariano; fada generosa dos sonhos de Elisa, a feliz e atenta benfeitora, a âncora da esperança; na cidade, exemplo de boa filha e boa irmã, uma zelação, uma lenda, inesgotável assunto.
Perpétua guarda o lenço, cumprido o ritual, pergunta:
- E Astério?
- Passei na loja…sabe que a carta não chegou mas hoje é sábado, não pode sair nem para o almoço. Por falar nisso, vou indo, tenho de mandar a marmita.
- De noite passo em casa de vocês, digo o que o padre aconselhou. Vamos decidir o que fazer.
Elisa, de pé, um soluço a sacode:
- Por que a gente não espera até ao fim do mês?
- Já se esperou até demais. Vamos logo discutir o que fazer. Eu não vou ficar de braços cruzados, não lhe disse? Quero minha parte – Já sem lágrimas, suspiros, lamentações, Perpétua troca o lenço pelo terço. Mais valem as orações.
Elisa gasta o derradeiro argumento:
- Quem sabe, a carta se perdeu no caminho…
- Carta registada não se perde. Nestes anos todos já perdeu alguma? Tolice. Diga a Astério que me espere, nada de bilhar hoje. Com a cunhada morta…
- E o pai?
Perpétua começa a passar as contas do terço:
- Amanhã a gente avisa a ele.
- É capaz de ter uma coisa…
- Quem? O Velho? Vai ficar uma fera, vai querer tomar dinheiro da gente, o mais que puder, isso sim. Se prepare, o tempo das larguezas se acabou.
Ao passar em frente ao corredor, Elisa enxerga ao fundo a chama das velas iluminando os santos no oratório. Uma, pela salvação da morta, aos pés de Cristo crucificado; a outra pela vida da tia, aos pés da Virgem. Ouve a voz do rapazola rezando Salve-Rainha, mãe de misericórdia.
Misericórdia, meu Deus!
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