segunda-feira, fevereiro 02, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº38




DO CAMISOLÃO, DA CAMISOLINHA, DO JARRO COM ÁGUA E DA ORAÇÃO


Pagara a promessa ainda no seminário, na semana dos exames, após receber carta de Perpétua com as novidades: a tia gozando saúde e os projectos de viagem. Morte houvera mas do Comendador, antes assim. Durante sete noites, Ricardo macerara os joelhos sobre grãos de milho, obtidos na despensa, e adquirira o hábito de rezar uma salve-rainha pela saúde da tia anciã, de tão velhinha avó.

A vida é um alforge de surpresas, afirma Dom José nos sermões dominicais, sobra-lhe razão. Ricardo ficou abobado quando viu tia Antonieta na porta da marinete, de anciã e avó não tinha nada. Nem parecia viúva, não pusera luto. Cabeleira loura, saindo do turbante, rolando nos ombros, o corpo apertado na blusa vermelha, na calça jean, a despertar exclamações. Não apenas o brado, o viva de Bafo de Bode, indecência! Ricardo ouvira igualmente o comentário de Osnar, em voz baixa, destinado a Aminthas:

- Que pedaço de mulher ela virou! Que ubre! Cabrona! – Elevava a voz:

- Uma fruta madura, Capitão Astério, parabéns pela cunhada. – Osnar distribuía patentes militares pelos amigos. Seu Manuel era Almirante. Dona Carmosina, Coronela da Artilharia Pesada.

Engraçado: não ficara nem desiludido nem frustrado com a brusca mudança da imagem concebida – surpreende-se Ricardo a pensar enquanto retira a batina, veste o camisolão, ajoelha-se para recitar as orações e bendizer o Senhor que fizera a tia adivinhar o presente desejado. Escondera a vara de pesca para impedir que fosse Peto o primeiro a usá-la, o irmão não tem o menor respeito pela propriedade alheia, um anarquista. Reza a Salve-Rainha pela saúde da tia, merecedora.

Estende-se na rede. Da alcova, a luz acesa ilumina o corredor em frente ao gabinete, a tia Antonieta fora ao banheiro. Em lugar de uma velhinha, de uma avó, uma verdadeira tia, alegre, flamante – e ele a imaginara mais idosa do que a mãe. Um absurdo. Ricardo a ouvira dizer a idade a Barbozinha: quarenta e quatro, meu poeta. Aqui não posso esconder, todos sabem. Fazem vinte e seis anos que fui embora, acabara de completar dezoito anos. Em São Paulo confesso trinta e cinco, pareço mais?

A mãe, ele sabe, diminui a idade. Devota e exigente, não admite mentiras e, no entanto, na hora de revelar a idade… A verdadeira está na certidão de casamento, trancada ali na escrivaninha junto com as escrituras das casas, a patente do pai, a caderneta militar, os louvores nas ordens de serviço. A tia não precisa de negar porque é bonita. Bonita não é bem o termo, Ricardo procura a palavra certa: bonitona. Nela tudo é grande e vistoso. Com que santa se parece? Com nenhuma das conhecidas, nem Santa Rita de Cássia, nem Santa Rosa de Lima. Tia Elisa quando melancólica, recorda Santa Maria Madalena. A mãe sempre de luto é Santa Helena com traje negro de viúva e véu de cinzas.

Mas a força a desprender-se da tia, qual delas a possui? Apenas chegou e imediatamente passou a comandar. Por ser rica e generosa, sim, certamente mas não só por isso. Há algo mais, indefinível, a impressionar Ricardo, a impor-se, não sabe explicar o que seja. Ele a enxerga cercada por um raio luminoso, como certos santos. Santa? Pela bondade, pela grandeza de alma, mas ela exibe outros atributos, carnais.

Humanos, não carnais, palavra maldita, os pecados carnais, pagos com as chamas do inferno durante a eternidade.

Passos no corredor, é a tia de volta do banheiro. A precedê-la chega o perfume, o mesmo dos envelopes, desprendendo-se a cada passo, anunciando-lhe a presença próxima. Ainda bem que o padre confessor lhe disse não haver pecado em perfume de velha tia. Velha? Madura.

Fruta madura fora a expressão usada por Osnar para classificá-la. Na hora confusa do desembarque, Cardo achara todo o palavreado de boas-vindas uma falta de respeito. Mas agora, ao ouvir os passos da tia, ao sentir-lhe o perfume, a comparação com uma fruta madura, rica de sumo, na plenitude da força, parece-lhe correcta, não vê desrespeito, despropósito, pecado. Desrespeito compará-la com as cabras, isso sim. Osnar não tem salvação.

Antonieta conduz o jarro esmaltado cheio de água. Nas sombras do corredor pisa a ponta do robe longo, tropeça, vacila, vai cair. Ricardo corre a tempo de sustê-la e tomar do jarro, levando-o para a alcova.

- Obrigado meu bem. – Com um sorriso gaiato, mede o sobrinho, enorme no camisolão de dormir: - Você ainda dorme de camisolão?

- No começo do ano, vou passar para a divisão dos maiores e dormir de pijama… - explica orgulhoso. – Mas mãe só vai comprar quando eu for para o seminário.

Por baixo do penhoar semi – aberto, a curta camisola cor-de-rosa mais revela do que esconde as graças da tia, Ricardo desvia os olhos, pousa o jarro na argola do lavatório.

Traga o lavatório para aqui e bote um pouco de água na bacia – pede Antonieta, sentada ante o espelho da penteadeira, cremes diversos em sua frente, vidros com líquidos coloridos, algodão, um exagero de frascos e potes. Tia Elisa não tem nem a metade, a mãe não se pinta desde a morte do pai.

Derrama a água, toma o rumo da porta. A tia observa-lhe os movimentos:

_ Vai embora sem me pedir a bênção?

- A bênção, tia. Deus lhe dê boa noite. – Dobra o joelho: - Obrigado pela vara de pesca.

- Assim. Não. Aqui perto e com um beijo.

Cardo beija-lhe a mão, ela toma-lhe o rosto e o beija em cada face. O perfume sobe dos seios. Mesmo sem querer, Ricardo os vislumbra, ou os adivinha, sobrando da camisola. Ubre, dissera Osnar.

Deita-se na rede, a luz permanece acesa no quarto da tia a desfazer a maquiagem, entra uma fresta da porta. Ricardo, de sono fácil – apenas cai na cama e os olhos se fecham – hoje, não consegue adormecer. Estranha a rede, quem sabe? Confusão igual à do desembarque quando viu a tia na porta da marinete, o oposto da imagem concebida na hora do anúncio da morte. O melhor é rezar. Desce da rede, ajoelha-se, cruza as mãos, Padre Nosso que estais no céu. O pensamento em Deus, louvado seja.

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