sábado, fevereiro 14, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 50


DO PASSEIO NA FEIRA COM O ANÚNCIO DO PRÓXIMO FIM DO MUNDO, CAPÍTULO DR PROFECIAS



A feira de Agreste é uma festa semanal. No primeiro sábado após a chegada das paulistas, transformou-se num festival, em regozijo público, por pouco termina em fuzuê.

Após a missa pela alma do Comendador, Tieta e Leonora passam em casa para trocar de roupa: ninguém aguenta fazer feira com vestidos negros, pesados, elas nem sabem por que milagre os puseram na mala. A comitiva inclui Elisa, Barbozinha, Ascânio Trindade, Osnar, o Velho Zé Esteves, paletó no braço, bastão e esposa, faz-lhes companhia até à Praça do Mercado (Praça Coronel Francisco Trindade), de onde a feira se estende pelas ruas vizinhas. Ali se despede, à tarde irá buscar Tieta para correrem duas casas à venda, entre as muitas oferecidas, as únicas convenientes.

Perpétua agradece o convite, não aceita. Vai à feira cedo, acompanhada por Peto, a carregar as cestas. Dia de feira, dia dos mendigos: Perpétua passa o resto das manhãs de sábado em casa, distribuindo esmolas, mercadejando com Deus um lugar no paraíso em troca de caridade. Em cada uma das casas das ruas principais, durante a semana, as famílias guardam as sobras de pão, as bolachas envelhecidas, restos de comida de véspera, frutas amassadas, algumas moedas, para a multidão de esmoleres a invadir a cidade, vindos quem sabe de onde. Seu Agostinho da padaria fornece por preço de ocasião sacos cheios de pães dormidos, duros como pedras, de bolachões moles, de bolos mofados, filantropia a preço módico. Quem dá aos pobres empresta a Deus. Com juros altos, bom emprego de capital.

Alguns pedintes são fixos em Agreste, passam diariamente pela manhã ou ao cair da tarde, possuem freguesia certa. O cego Cristóvão senta-se na escadaria da igreja na hora da missa chova ou faça sol e ali se demora de mão estendida a recitar sua litania. O beato Possidónio, somente aos sábados e na feira. Vem de Rocinha, sob o queixo a barba rala de profeta caboclo, sem dentes e boca de praga; traz um caixote de querosene, vazio e uma cuia de queijo. Prega nas proximidades do local onde ficam os vendedores de pássaros, trepado no caixote, a cuia ao lado para as esmolas – só aceita dinheiro. Estende-se em nebulosa lengalenga sobre os pecados dos homens; anuncia desgraças aos montes, profeta de um Deus terrível, vingativo, cruel. Cita os evangelhos, condena protestantes e maçons, proclama a santidade do padre Cícero Romão. Basta enxergar uma mulher mais pintada, ergue-se a insultá-la, destinando-as às chamas eternas.

A voz esganiçada, Perpétua queixa-se dos mendigos a Antonieta, fala deles como de inimigos: cada vez mais ousados e exigentes, o exercício da caridade transforma-se em sacrifício:

- Não aceitam nem mangas nem cajus, dizem que ninguém compra, tem demais, manga não é esmola que se dê, já se viu? Mesmo banana torcem a cara. Não tem um trocado? Querem dinheiro. Outro dia um me chamou de canguinha.

Na feira, montes de frutas se sucedem, muitas delas Leonora não conhece; bate palmas encantada. Que goiabinas pequenas! Não são goiabas, são araçás, araçá-mirim, araçá cagão. Com elas se faz o doce que comemos em casa de Elisa. As goiabas estão aqui, vermelhas e brancas: vermelhas e brancas. Comparadas às goiabas dos japoneses de São Paulo, são pequenas, mas sinta o gosto, meça a diferença. Melhor ainda se estiver bichada. Cajus, não há fruta igual para a saúde. A não ser o jenipapo, que cura até doença do peito. Você precisa comer jenipapada para ficar forte. E o gosto? Para mim não há nada mais gostoso. Vamos comprar agora mesmo; o jenipapo quanto mais encarquilhado melhor. Tieta escolhe, conhecedora. Mangabas, cajás, cajaranas, umbus, pitangas. Os mendigos têm razão ao recusarem esmolas de manga, sobram pela feira, as cores de aquarela, as variedades numerosas: rosa, espada, Carlota, coração-de-boi, coração magoado, itiúba, tantas. As jacas, duras e moles, descomunais, das talhadas expostas sobe um odor de mel. Que fruta é essa que parece pinha? Condessa. E essa maior? Jaca-de-pobre, o sorvete é sublime. Leonora quer ver de perto, quer tocá-la. Curva-se, exibe a calçola diminuta sob a mini-saia. Júbilo geral.

Quando a viu de mini-saia, Ascânio pensou desaconselhar o traje na visita à feira mas temeu passar por tabaréu, por retrógrado, calou-se. Agora é ir em frente, buscando não ver e não escutar. Difícil, pois a animação aumenta.

Nunca a feira de Agreste conheceu pagodeira igual. Barbozinha, entretido a explicar a Tieta problemas de encarnação e reencarnação, da vida no astral, assuntos em que é professor emérito, não se dá conta do sucesso, mas Ascânio Trindade aflige-se com tamanho atraso, indeciso sobre a maneira de agir. Aflito apenas? Ou sofre também ao ver expostas ao público aquelas formosuras que desejaria exclusivas, reservadas a quem conduza ao altar a inocente Leonora Cantarelli? Inocente de todo o mal não imagina o mal, não imaginaria o escândalo que provocaria indo à feira vestindo de mini-saia, moda banal no sul do país e no estrangeiro. Nas páginas coloridas das revistas, Ascânio admirou mini-saias bem mais ousadas, a de Leonora até que lhe encobre a bunda se ela se mantém a prumo.

- É melhor que ela se curve menos – sussurra Osnar a Ascânio.

Nem Osnar, um cínico, se anima a aconselhar a cândida vítima da ignorância local, quanto mais Ascânio. Prossegue o passeio pela feira arrancando exclamações de Leonora e do bando de moleques a seguir a comitiva. De quando em vez um assobio, uma interjeição, uma frase em língua de sotaque

- Espia, Manu, o andor da procissão está passando…

Sacos de alva, olorosa farinha de mandioca, torradas em casas-de-farinha da região: a puba, a tapioca, os beijus. Prove, Leonora. Com café são óptimos, vamos comprar. Esses molhados levam leite de coco, não há quem resista, vou engordar como uma porca. Mas que é isso, meu Deus, essa meninada a segui-los? Antonieta contempla o ajuntamento.

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