domingo, fevereiro 15, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 51


Não só meninos, homens feitos também, bando de ordinários. É a mini-saia de Leonora, figurino inédito em Agreste. Antonieta olha para Ascânio, para Osnar, eles fingem não se dar conta da corja em zombaria. Barbozinha está reencarnado pela esta vez em longínqua galáxia. As mãos nas cadeiras, à maneira das feirantes, Tieta fita o animado rebanho. O olhar da ricaça de são Paulo – ou o olhar da pastora de cabras? – entre severo e pícaro, dissolve o cortejo, restam apenas alguns moleques, admiradores mais renitentes. Ascânio respira, Osnar aprova. Para dizer a verdade, o que mais incomoda Ascânio é a presença de Osnar, o olhar de verruma, a expressão de beatitude.

Duas cadeiras de barbeiro ao ar livre, ocupadas ambas, e o trovador Claudionor das Virgens a declamar os versos de folheto de cordel:

Três vezes já casei
Com branca, preta, mulata
No padre, no juiz, na mata
Pela quarta casarei
Por ordem do delegado
Para deixar de ser ousado,

Cala-se a voz do trovador das Virgens à passagem da comitiva. A mini-saia o inspira, improvisa:

Quem me dera casar com Aurora
Que passa de cu de fora.

- É isso que você come em casa no café da manhã – Tieta aponta as raízes de aipim, de inhame, as batatas-doces. A verde fruta-pão.

Elisa, inquieta, a constatar novo crescimento novo crescimento do número de basbaques convida:

- Vamos indo para casa? Estou morrendo de calor.

Verdade, aliás. Não trocara de roupa, está com vestido negro posto para a missa, fechado no pescoço, o contrário de Leonora. O que mais aflige Elisa?

Os moleques, os assobios, o deboche do trovador, a falta de respeito, o achincalhe ou o sucesso da paulista?

- Ascânio prometeu me levar para ver os passarinhos… - doce pipilar de Leonora.

A procissão engrossa, enquanto rumam para a feira de passarinhos – os pássaros sofrê, os pássaros pintores, os pássaros negros, os cardeais, os azulões, os canários-da-terra, papagaios e periquitos e uma araponga a malhar o ferro com o seu grito de bigorna. Leonora irradia felicidade, o acompanhamento toma aspecto de comício, com risos, dichotes, pregões.

- Acho melhor a gente ir andando – insiste Elisa.

- Só um minuto mais. Olhe esse, que amor!

- É um pássaro sofrê, imita todos os passarinhos. Ouça – Ascânio assobia, a ave responde.

Da turba em gozação, outros assobios, acanalhados. Fi-ti-ó-fó, vai também o passarinho. Rindo, a pitar o cigarro de palha, soletre, Osnar avança em direcção aos pândegos, agarra um molecote pela orelha, os demais recuam em correria, explodem em apupos, a troça se estende pela feira.

Ali perto, em cima do caixote de querosene, a cuia ao lado, o profeta Possidónio proclama o iminente fim do mundo, anunciado pelo aparecimento de objectos luminosos em Mangue Seco, ígneas naves de gás conduzindo arcanjos enviados por Deus para escolher e marcar os locais onde se erguerão as fogueiras de enxofre sobrenatural, fabricado nas caldeiras do inferno para consumir o mundo entregue à devassidão, à orgia, à luxúria.

De costas para a cara do ascético beato, curva-se Leonora, oferecendo o dedo a um papagaio manso e falador – diz bom-dia, pede a bênção, fecha um olho, cómico. O beato Possidónio, por mais erudito em matéria de iniquidade humana, de depravação, de impudicícias, jamais vira, com os seus olhos queimados pelo sol do sertão, tal desregramento, tamanha imoralidade. O excitante traseiro de Leonora, praticamente nu, obra-prima de Satanás, aplaudido pela súcia de condenados, coloca-se diante das místicas ventas do profeta, provocação monstruosa!

- Arreda! Sai de minha frente, volta para as profundas do inferno, mulher imunda, pecadora, rameira!

Indignado, Ascânio marcha para o beato Possidónio:

- Cala a boca, maluco!

Mas Tieta o detém, segura-lhe o braço, diverte-se às pamparras.

- Deixa o velho Ascânio. É a mini-saia de Leonora.

- Hein! A mini-saia… - Leonora não sabe se há-de rir ou chorar. – Não me diga, nunca pensei… - dirige-se a Ascânio. – Nunca me passou pela cabeça. Desculpe.

- Quem tem de pedir desculpas sou eu, pelo atraso do povo. Um dia vai mudar – No fundo, nem ele próprio tem certeza. Mudança tão incerta quanto o fim do mundo do sermão de Possidónio.

Deixam para outro passeio boa parte da feira: as carnes-de-sol, os guaianos, os potes e moringas, as figuras de barro, o caldo de cana extraído em primitivas prensas de madeira, tão sujo e tão delicioso. O beato continua a vociferar enquanto eles partem. Tieta a rir do acontecido, e logo a pedir a Osnar que lhe conte a célebre história da polaca, sobre a qual Carmosina lhe falara. Alguns moleques ainda os acompanham pela rua.

A notícia os precedeu, chegou ao bar e ao adro da igreja, um alvoroço para vê-los passar. Leonora anda o mais depressa possível, nunca pensara desencadear o fim do mundo.

- Está próximo, sim, tive aviso e confirmação, posso assegurar – esclarece Barbozinha a par dos segredos dos deuses e das loucuras dos homens – Vai ser uma explosão atómica colossal. Todas as bombas atómicas existentes, as americanas, às russas, as francesas, as inglesas, as chinesas – os chineses estão fabricando na surdina, tenho informações recentes – vão explodir ao mesmo tempo, às três horas da tarde de um primeiro dia de Janeiro. Não digo o ano para não alarmar ninguém.

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