Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 52
EPISÓDIO Nº 52
BREVE ESCLARECIMENTO DO AUTOR SOBRE PROFECIAS E ENXÔFRE
Houve quem quisesse descobrir na arenga do beato Possidónio sobre o próximo e inevitável fim do mundo referências proféticas à indústria do dióxido de titânio.
Quando, por exemplo, o iluminado aludiu ao enxofre procedente dos infernos para destruir a terra e a humanidade não citou claramente os objectos não identificados, vistos em Mangue Seco? Naves de gás?
Conotações, existem, não há dúvida. Em tempos de tanto misticismo, o melhor é não negar nem discutir. Os profetas multiplicam-se, exibem-se na rádio e na televisão. Ao contrário do beato Possidónio, não se contentam com escassa esmola. O beato Possidónio é profeta antigo, produto semifeudal, perdido no sertão, ainda não percebeu as maravilhas da sociedade de consumo.
Não se dá conta de que nas mini-saias lavamos a vista condenada à cegueira pela poluição. Quanto ao enxofre é produzido nos Estados Unidos, nação privilegiada, não se faz necessário importá-la dos infernos.
DE PEDINTES E ABUSOS, DE AMBIÇÕES – CAPÌTULO DE MESQUINHOS INTERESSES
Alegre alvoroço, na feira e em todo o burgo, nascido da presença em Agreste de Tieta e da enteada, formosa e virginal. Tão meiga, lembra a Ricardo, a noiva predilecta do Senhor, Santa Teresinha do Menino Jesus, apesar da mini-saia, do transparente cafetã e dos shortes ousados. Mesmo acompanhando as indecentes modas actuais, percebe-se na suave Leonora o odor da castidade, o encanto da inocência.
Após o passeio na feira, Elisa ameaçara vestir a mini-saia trazida por Tieta, em solidariedade e desagravo a Leonora – ou em competição? Astério se opôs, contou com o apoio de Perpétua:
- Podem-me chamar de atrasada; sou contra, pelo menos aqui. Em São Paulo, pode ser. Aqui o povo não aceita, acha imoral. Eu também para ser franca – a voz esganiçada, estridente, soprando as labaredas do inferno.
- Por mim, dona Perpétua, fique descansada. Nunca mais uso. Não quero ser responsável pelo fim do mundo – promete a mansa Leonora num fugaz sorriso.
- Não lhe estou censurando, sobrinha, você não teve culpa.
Não deseja ofender a querida parenta, sobrinha por adopção. Sobrinha, sim, pois enteada da irmã, filha do cunhado industrial e comendador do Papa, herdeira rica. Pena os meninos serem tão novos, quem está rondando a bolada é Ascânio, não parecia tão esperto.
- Sei que você não fez por mal sua boba. Em São Paulo, nos Estados Unidos, nessas terras onde só tem protestante, não digo nada. Mas aqui ainda se cumpre a lei de Deus.
Conversa aparentemente sem consequência mas, por detrás da alegria a rodear Tieta, existem esperanças, planos, alguns audazes. Reunido em torno à filha pródiga, o clã dos Esteves se desdobra em bajulação às paulistas, escondendo sob o manto da paz familiar uma efervescência de inconfessáveis ambições, de furtivas diligências. Entreolham-se, com suspeita, uns dos outros.
No correr da semana, sucederam-se as visitas, uma romaria. Os importantes do lugar, colegas de Astério, a professora Carlota, seu Edmundo Ribeiro, colector, Chico Sobrinho com a esposa Rita, por coincidência acompanhados por Lindolfo Araújo, tesoureiro da Prefeitura e galã – um dia ainda se enche de coragem e irá tentar a vitória num programa de caloiros na televisão, em Salvador. Vieram o doutor Caio Vilasboas, circunspecto, falando difícil, metade médico, metade fazendeiro, se fosse viver de clínica em Agreste, terminaria pedindo esmola aos sábados, e o coronel Artur de Tapitanga que demorou a tarde inteira conversando. Conhecia Tieta de quando ela, meninota, pastoreava as cabras do pai em terras vizinhas às suas, aliás hoje suas, compradas a Zé Esteves. Fez elogios à beleza de Leonora: parece como uma estatueta de biscuit que antigamente tinha na casa grande, quebrou-se. Fosse ele ainda jovem, na sustança dos setenta, e lhe proporia casamento, mas aos oitenta e seis não quer correr o risco. Por mais honesta que a moça seja, há perigo de chifre. Ria numa catarreira grossa, puxando a fumaça do charuto. Único a faltar, o prefeito da cidade, Mauritônio Dantas, ausência explicada por Ascânio Trindade por ocasião do desembarque: o digno mandatário vive confinado em casa, de miolo mole desde a deserção da mulher, Dona Amélia de apelido Mel, activíssima militante da revolução sexual.
Houve quem quisesse descobrir na arenga do beato Possidónio sobre o próximo e inevitável fim do mundo referências proféticas à indústria do dióxido de titânio.
Quando, por exemplo, o iluminado aludiu ao enxofre procedente dos infernos para destruir a terra e a humanidade não citou claramente os objectos não identificados, vistos em Mangue Seco? Naves de gás?
Conotações, existem, não há dúvida. Em tempos de tanto misticismo, o melhor é não negar nem discutir. Os profetas multiplicam-se, exibem-se na rádio e na televisão. Ao contrário do beato Possidónio, não se contentam com escassa esmola. O beato Possidónio é profeta antigo, produto semifeudal, perdido no sertão, ainda não percebeu as maravilhas da sociedade de consumo.
Não se dá conta de que nas mini-saias lavamos a vista condenada à cegueira pela poluição. Quanto ao enxofre é produzido nos Estados Unidos, nação privilegiada, não se faz necessário importá-la dos infernos.
DE PEDINTES E ABUSOS, DE AMBIÇÕES – CAPÌTULO DE MESQUINHOS INTERESSES
Alegre alvoroço, na feira e em todo o burgo, nascido da presença em Agreste de Tieta e da enteada, formosa e virginal. Tão meiga, lembra a Ricardo, a noiva predilecta do Senhor, Santa Teresinha do Menino Jesus, apesar da mini-saia, do transparente cafetã e dos shortes ousados. Mesmo acompanhando as indecentes modas actuais, percebe-se na suave Leonora o odor da castidade, o encanto da inocência.
Após o passeio na feira, Elisa ameaçara vestir a mini-saia trazida por Tieta, em solidariedade e desagravo a Leonora – ou em competição? Astério se opôs, contou com o apoio de Perpétua:
- Podem-me chamar de atrasada; sou contra, pelo menos aqui. Em São Paulo, pode ser. Aqui o povo não aceita, acha imoral. Eu também para ser franca – a voz esganiçada, estridente, soprando as labaredas do inferno.
- Por mim, dona Perpétua, fique descansada. Nunca mais uso. Não quero ser responsável pelo fim do mundo – promete a mansa Leonora num fugaz sorriso.
- Não lhe estou censurando, sobrinha, você não teve culpa.
Não deseja ofender a querida parenta, sobrinha por adopção. Sobrinha, sim, pois enteada da irmã, filha do cunhado industrial e comendador do Papa, herdeira rica. Pena os meninos serem tão novos, quem está rondando a bolada é Ascânio, não parecia tão esperto.
- Sei que você não fez por mal sua boba. Em São Paulo, nos Estados Unidos, nessas terras onde só tem protestante, não digo nada. Mas aqui ainda se cumpre a lei de Deus.
Conversa aparentemente sem consequência mas, por detrás da alegria a rodear Tieta, existem esperanças, planos, alguns audazes. Reunido em torno à filha pródiga, o clã dos Esteves se desdobra em bajulação às paulistas, escondendo sob o manto da paz familiar uma efervescência de inconfessáveis ambições, de furtivas diligências. Entreolham-se, com suspeita, uns dos outros.
No correr da semana, sucederam-se as visitas, uma romaria. Os importantes do lugar, colegas de Astério, a professora Carlota, seu Edmundo Ribeiro, colector, Chico Sobrinho com a esposa Rita, por coincidência acompanhados por Lindolfo Araújo, tesoureiro da Prefeitura e galã – um dia ainda se enche de coragem e irá tentar a vitória num programa de caloiros na televisão, em Salvador. Vieram o doutor Caio Vilasboas, circunspecto, falando difícil, metade médico, metade fazendeiro, se fosse viver de clínica em Agreste, terminaria pedindo esmola aos sábados, e o coronel Artur de Tapitanga que demorou a tarde inteira conversando. Conhecia Tieta de quando ela, meninota, pastoreava as cabras do pai em terras vizinhas às suas, aliás hoje suas, compradas a Zé Esteves. Fez elogios à beleza de Leonora: parece como uma estatueta de biscuit que antigamente tinha na casa grande, quebrou-se. Fosse ele ainda jovem, na sustança dos setenta, e lhe proporia casamento, mas aos oitenta e seis não quer correr o risco. Por mais honesta que a moça seja, há perigo de chifre. Ria numa catarreira grossa, puxando a fumaça do charuto. Único a faltar, o prefeito da cidade, Mauritônio Dantas, ausência explicada por Ascânio Trindade por ocasião do desembarque: o digno mandatário vive confinado em casa, de miolo mole desde a deserção da mulher, Dona Amélia de apelido Mel, activíssima militante da revolução sexual.
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