segunda-feira, março 02, 2009


Tieta do Agreste


EPISÓDIO Nº 66


ONDE TIETA COMPRA UM TERRENO EM MANGUE SECO E LEONORA, BEM-EDUCADA, DEVANEIA



Haviam voltado aos cômoros na noite enluarada, ela e Tieta. Leonora parecia flutuar na paisagem encantada – de repente liberta do passado, recém nascida na magia da lua cheia derramada sobre as dunas e o oceano, no embalo do marulho das ondas. Gostaria de demorar no cimo, deitada sobre a areia, invadida de paz. Mas, quando o Comandante veio recordar o encontro marcado com dona Aída e Modesto Pires, Leonora não quis ser desatenta, regressou com Tieta à Toca da Sogra.

Por sua vontade teria permanecido no alto dos cômoros, sob o luar encomendado por Ascânio, deslumbrante como ele prometera, a sentir o mar nocturno arrebentando contra as montanhas de areia. Mesmo sozinha: pensaria nele, cioso dos deveres de administrador, tão correcto. Sujeito decente, diziam de Ascânio. Decência, virtude rara, constata Leonora. Teve de atravessar o Brasil, chegar ao sertão para vislumbrá-la. Dá-se conta que comete uma injustiça: Tieta é decente: a seu modo, sem dúvida. Decência não significa candura, castidade. Mulher direita, diziam dela no Refúgio.

Se estivesse nas dunas poderia escorregar, estendida sobre uma palma de coqueiro, igual a Peto, moleque travesso. Não fora travessa, não fora moleca nem menina. Não tivera infância, tão pouco adolescência; não provara o gosto do primeiro beijo recebido ou dado em ímpeto de ternura. Não tivera namorados, não ouvira palavras sussurradas, cálidas. Aos treze anos já lhe apalpavam inexistentes seios.

Tenta reconhecer os sons da harmónica – há festa na povoação. Passaram por lá, viram os pescadores reunidos diante de uma choupana em torno do tocador. Não era outro senão Claudionoro das Virgens, com a harmónica, as emboladas, as trovas, os improvisos, de lugarejo em lugarejo, de baptizado em baptizado, de casamento em casamento, onde houver festa. Ao vê-los saudara:

Salve o senhor Comandante
E sua ilustre companhia.


Na Toca da Sogra, Antonieta, apressada como sempre que deseja alguma coisa, acerta os últimos detalhes da compra do terreno. Leonora persegue o som da harmónica, distante da conversa.

- Pague como bem entender, em quantas prestações quiser. Nem por ser dono vou mentir: terreno em Mangue Seco não se compra nem se vende. De muitas dessas terras nem se sabe o dono. Faz mais de quatro anos que vendi um lote. Para um gringo que apareceu por aqui; se lembra, Comandante?

- Lembro muito bem, era um alemão, pintor. Anunciou que se ia desfazer da casa da Baviera para vir morar em Mangue Seco.

- Pagou três prestações adiantadas dizendo que precisava de três meses para botar a vida em ordem na terra dele e voltar de vez. Nunca mais voltou nem acabou de pagar.

Eu quero pagar à vista seu Modesto. Dinheiro batido, moeda corrente… - anunciou Tieta a rir.

- Vê-se que a senhora não é mulher de negócios, dona Antonieta: com a inflação, comprar a prazo sempre é melhor.

- Não gosto de dever, é por isso, mas não pense que sou tola. Como pago à vista quero abatimento.

Foi a vez de Modesto Pires rir:

- Abatimento? Vá lá. Cinco por cento, que lhe parece? Não por ser à vista mas pelo prazer da vizinhança.

Espreguiçadeiras, tamboretes, um banco rústico na porta de casa, debaixo dos coqueiros. Ali conversam enquanto a lua se desmancha. Peto adormecera deitado na esteira.

Leonora escuta vagamente o diálogo, também ela se pudesse, compraria terreno em Mangue Seco. Não para a velhice mas para ficar desde agora.

Ansiara a vida inteira por sentimentos e verdades de cuja existência tinha notícias por ouvir dizer, através de filmes de cinema, das novelas de televisão. Nada de mais, sentimentos normais, verdades corriqueiras. A avó, referindo-se à vida na aldeia toscana antes da viagem, falava de coisas simples: família, sossego, paz, amor. Amor como seria? Nas ruelas podres, no cortiço seboso, ninguém soubera responder.

Quanto mais por baixo, batida, derrotada, lacerada, rota por dentro mais se refugiava Leonora no modesto sonho irrealizável: afecto, ternura, bem-querer de um homem. Vida limpa como existia fora dos limites onde nascera, crescera e se fizera mulher, mais além do círculo de dor e desespero. Subindo e descendo a Avenida nas frias madrugadas, carregando seu fardo, o castigo por ter nascido filha de pais tão pobres em terra tão rica, as chagas abertas, ainda assim sonhava. Se não sonhasse só lhe restaria a morte.

Inesperadamente, quando o horizonte se fizera aperto na garganta, estertor final, conheceu a bondade e nela descansou, aprendeu novos valores, sentiu-se uma pessoa. Os sonhos loucos de amor eterno adormeceram pois, não sendo torpe a nova condição, apenas triste, menos carente estava. Não de todo satisfeita: sempre no desejo, na intenção de sair daquele invólucro para a existência desejada: casa e companheiro – não previa casamento – um par de filhos. Outros reclamam dinheiro e fama. Leonora nascera como a avó, para ser dona-de-casa, mãe de família, não almeja mais do que isso.


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