Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 67
Ali em Agreste, mundo pacato e diferente, onde a vida parece ter adormecido e assim é vivida por inteiro, Leonora sente-se tomada de exaltação e medo. Em Agreste o sonho persiste além da imaginação, concretiza-se em recatado enleio, alimenta-se de olhares e sorrisos, gentilezas, meias palavras, cresce no canto do pássaro sofrê, presente de príncipe encantado que ela não deseja príncipe, nobre ou rico, apenas encantado, decente. Mesmo sabendo-o inatingível, Leonora anseia ao menos chegar à margem, tocar com as pontas dos dedos o simples, maravilhoso mundo.
Para agir correctamente, deve abrir-se com Mãezinha, ouvi-la, seguir-lhe os conselhos. Receia, porém, que Tieta, temerosa das consequências, resolva apressar a volta a São Paulo. Leonora pretende apenas alguns dias de ternura, mesmo irremediavelmente contados, poucos – a certeza da morte não impede o homem de aproveitar a vida. Reivindica o direito a ouvir e a pronunciar palavras trémulas, a esboçar gestos de carinho, o direito ao primeiro beijo, como será?
Para guardar essas recordações, ter com que encher de saudade a solidão. Nunca sentiu saudade. De nada, de ninguém. Tudo foi ruim e sujo em seu percurso. Muita falta faz não ter um instante ao menos, um rosto, uma carícia, uma palavra a relembrar, não ter saudades. A solidão torna-se vazia e perigosa. Implora uns dias apenas, por misericórdia, suficientes para encher o coração de momentos ternos, dos quais se recordar. Então, dirá: vamos embora daqui, Mãezinha, antes que seja tarde.
Prossegue Claudionor animando o arrasta pé, pode atravessar noites e noites, firme na harmónica. Um ruído de motor se mistura à música, vem dos lados do rio, quem será? Leonora terá saudades desse minuto breve, do pressentimento e da ansiedade. Acompanha o barulho que cresce e se modifica:
A embarcação enfrenta o mar na entrada da barra. Volta a reinar sozinha a harmónica festiva. Logo, os passos na areia, Leonora pôs-se de pé. Ascânio aparece, desembarca do luar. Num ímpeto, a moça se adianta.
No meio da sombra as mãos se tocam, sorriem os lábios, brilham os olhos.
- Vim no barco de Pirica. Veio só me trazer, já está de volta – novamente o barulho do motor, o casco de encontro às vagas.
- Não aguentou esperar até amanhã, hein, mestre Ascânio? Fez muito bem, quem é aguardado não se pode atrasar – saúda o Comandante.
O rapaz busca uma desculpa:
- Prefiro viajar de noite do que acordar de madrugada.
Não sabe como agir: deve sentar-se a conversar ou partir com Leonora?
Dona Aída vem em seu socorro:
- Por que não leva Leonora para apreciar o luar de cima dos cômoros?
É tão… - ia a dizer romântico, conteve-se - …tão lindo…
Sugestão aceite, a moça amarra um lenço na cabeça:
- Com licença…
O movimento acorda Peto: vou com vocês. Mas o Comandante, cúmplice, proíbe.
- É hora de menino estar dormindo.
Os vultos perdem-se entre os coqueiros. Dona Laura suspira:
- Nada se compara com a juventude. Só tenho pena de não ter namorado com Dário aqui em Mangue Seco. Quando vim, já tínhamos dez anos de casados.
- Foi nossa segunda lua-de-mel… - lembra o comandante.
- Moça educada, essa… se vê logo que é de boa família – elogia dona Aída.
Pensativa, acompanhando com os olhos as duas sombras, Tieta retorna à conversa:
- Leonora? Um amor de criatura. Está saindo da fossa, de uma decepção tão grande que lhe abalou a saúde. Um patife, de quem foi noiva, só queria o dinheiro dela. Felizmente, me dei conta a tempo. Mas a pobre sofreu demais, uma crise terrível, não dormia, não comia, acabou anémica. Por isso trouxe ela comigo para curar-se nos ares de Agreste.
- Agiu certo, aqui ela vai refazer-se em dois tempos. Não há como leite de cabra para levantar as forças de uma vivente – aprova Modesto Pires.
- O mais curioso é que ele também teve uma desilusão medonha. Não ouviu falar, dona Antonieta? – pergunta dona Aída.
Antonieta conhece a história tintin por tintin mas não quer furtar a dona Aída o prazer do relato, das minúcias e dos comentários:
- Não, senhora.
Não? – admira-se dona Aída no cúmulo da satisfação: - Pois eu lhe conto.
Ali em Agreste, mundo pacato e diferente, onde a vida parece ter adormecido e assim é vivida por inteiro, Leonora sente-se tomada de exaltação e medo. Em Agreste o sonho persiste além da imaginação, concretiza-se em recatado enleio, alimenta-se de olhares e sorrisos, gentilezas, meias palavras, cresce no canto do pássaro sofrê, presente de príncipe encantado que ela não deseja príncipe, nobre ou rico, apenas encantado, decente. Mesmo sabendo-o inatingível, Leonora anseia ao menos chegar à margem, tocar com as pontas dos dedos o simples, maravilhoso mundo.
Para agir correctamente, deve abrir-se com Mãezinha, ouvi-la, seguir-lhe os conselhos. Receia, porém, que Tieta, temerosa das consequências, resolva apressar a volta a São Paulo. Leonora pretende apenas alguns dias de ternura, mesmo irremediavelmente contados, poucos – a certeza da morte não impede o homem de aproveitar a vida. Reivindica o direito a ouvir e a pronunciar palavras trémulas, a esboçar gestos de carinho, o direito ao primeiro beijo, como será?
Para guardar essas recordações, ter com que encher de saudade a solidão. Nunca sentiu saudade. De nada, de ninguém. Tudo foi ruim e sujo em seu percurso. Muita falta faz não ter um instante ao menos, um rosto, uma carícia, uma palavra a relembrar, não ter saudades. A solidão torna-se vazia e perigosa. Implora uns dias apenas, por misericórdia, suficientes para encher o coração de momentos ternos, dos quais se recordar. Então, dirá: vamos embora daqui, Mãezinha, antes que seja tarde.
Prossegue Claudionor animando o arrasta pé, pode atravessar noites e noites, firme na harmónica. Um ruído de motor se mistura à música, vem dos lados do rio, quem será? Leonora terá saudades desse minuto breve, do pressentimento e da ansiedade. Acompanha o barulho que cresce e se modifica:
A embarcação enfrenta o mar na entrada da barra. Volta a reinar sozinha a harmónica festiva. Logo, os passos na areia, Leonora pôs-se de pé. Ascânio aparece, desembarca do luar. Num ímpeto, a moça se adianta.
No meio da sombra as mãos se tocam, sorriem os lábios, brilham os olhos.
- Vim no barco de Pirica. Veio só me trazer, já está de volta – novamente o barulho do motor, o casco de encontro às vagas.
- Não aguentou esperar até amanhã, hein, mestre Ascânio? Fez muito bem, quem é aguardado não se pode atrasar – saúda o Comandante.
O rapaz busca uma desculpa:
- Prefiro viajar de noite do que acordar de madrugada.
Não sabe como agir: deve sentar-se a conversar ou partir com Leonora?
Dona Aída vem em seu socorro:
- Por que não leva Leonora para apreciar o luar de cima dos cômoros?
É tão… - ia a dizer romântico, conteve-se - …tão lindo…
Sugestão aceite, a moça amarra um lenço na cabeça:
- Com licença…
O movimento acorda Peto: vou com vocês. Mas o Comandante, cúmplice, proíbe.
- É hora de menino estar dormindo.
Os vultos perdem-se entre os coqueiros. Dona Laura suspira:
- Nada se compara com a juventude. Só tenho pena de não ter namorado com Dário aqui em Mangue Seco. Quando vim, já tínhamos dez anos de casados.
- Foi nossa segunda lua-de-mel… - lembra o comandante.
- Moça educada, essa… se vê logo que é de boa família – elogia dona Aída.
Pensativa, acompanhando com os olhos as duas sombras, Tieta retorna à conversa:
- Leonora? Um amor de criatura. Está saindo da fossa, de uma decepção tão grande que lhe abalou a saúde. Um patife, de quem foi noiva, só queria o dinheiro dela. Felizmente, me dei conta a tempo. Mas a pobre sofreu demais, uma crise terrível, não dormia, não comia, acabou anémica. Por isso trouxe ela comigo para curar-se nos ares de Agreste.
- Agiu certo, aqui ela vai refazer-se em dois tempos. Não há como leite de cabra para levantar as forças de uma vivente – aprova Modesto Pires.
- O mais curioso é que ele também teve uma desilusão medonha. Não ouviu falar, dona Antonieta? – pergunta dona Aída.
Antonieta conhece a história tintin por tintin mas não quer furtar a dona Aída o prazer do relato, das minúcias e dos comentários:
- Não, senhora.
Não? – admira-se dona Aída no cúmulo da satisfação: - Pois eu lhe conto.
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