Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 68
DO PRIMEIRO BEIJO EM FRENTE DA COSTA DE ÁFRICA, CAPÌTULO DE UM ROMANTISMO ATROZ COMO NÃO SE USA MAIS
Sentam-se no alto da duna, diante deles o oceano.
- Obrigado - diz Leonora.
- De quê?
- Do luar. Não foi você que encomendou?
- Ah! – descontrai-se um pouco – Gostou? Não lhe disse que São Jorge é meu chapa?
- Obrigado também por ter vindo.
Um calor no peito a emudecê-lo. Os ruídos da festa na povoação vêm morrer no embate das vagas com os cômoros. Qualquer assunto serve para vencer a mude:
- Festa de aniversário de Jonas, o chefe da colónia de pescadores. É maneta, o tubarão comeu-lhe o braço esquerdo.
- Tem tubarões aqui?
- No mar aberto, demais. Às vezes chegam até à praia. São audazes e vorazes. Qualquer descuido, é a morte.
Não é hora de lembrar a morte, talvez por isso retornam à contenção, ao retraimento, à timidez. Os dois em silêncio, reduzidos a furtivos olhares, ainda assim tão bom! A lua fincada no céu, feita de encomenda, exclusiva para eles. Luar de enamorados, próprio para se falar de amor. Isso é o que Ascânio pretende dizer. Ensaia a frase, morre-lhe nos lábios, finalmente explica:
- Do outro lado, a África.
- A África?
Ele aponta com o dedo, indica na distância:
- Do outro lado do mar.
- Ah!, sim. A África, eu sei. – não quer deixar morrer o diálogo. – Teve muito trabalho hoje?
Não é de geografia nem de problemas de administração que desejam se ocupar. Mas onde o ânimo para as palavras ardentes, a declaração de amor ainda usada pelos namorados em Agreste?
- A mesma coisa de todos os sábados: pedidos para consertar caminhos, limpar as fontes, pequenas benfeitorias, um mata-burros, um pontilhão. Leonora não pode imaginar a falta de recursos em Agreste. Já foi município rico, noutros tempos. Quando o avô de Ascânio era prefeito.
Ouvi dizer que você vai ser o novo prefeito.
- Penso que sim. Sabe por quê? Porque ninguém quer o posto. Mas eu aceito. Vou lhe dizer uma coisa, se quiser me chame de visionário. Tenho confiança, penso que tudo vai mudar e Agreste vai voltar ao que foi. Não suporto ver a minha terra nessa pasmaceira.
- É bom ter confiança, sonhar. Você louco por sua terra.
- Sou, sim. Quero que ela saia do marasmo em que afundou. Hei-de conseguir – toma alento, está embalado, disposto – a vida é engraçada. – A vida é engraçada. Não fez um mês, eu não tinha mais fé em nada, nem esperança. Escrevia carta nos jornais, reclamava ao governo, mas não acreditava em resultados. Agora tudo me parece fácil. Depois que…
- Depois quê?
- Que vocês chegaram. Tudo mudou, ficou alegre. Até eu.
- Por causa de Mãezinha, onde ela chega, espanta a tristeza. É a pessoa melhor do mundo.
- Devido a ela também. Mas para mim…
Leonora aguarda, lateja-lhe o coração descompassado. O vento traz farrapos de risos, sons de harmónica, o nome de Arminda gritado no forro. A voz de Ascânio rompe-se num lamento:
- Eu era um morto-vivo, não achava graça em nada. Vou lhe contar, se permitir. Ela se chama Astrud.
Para que contar? Quem não sabe em agreste? Dona Carmosina, romântica como Leonora, recitara as cartas para ela e Tieta, suspirara os detalhes tristes. Revoltara-se Leonora com o procedimento da fingida. Tieta apenas rira, não era de sentimentalismos, de amor se vive, não se morre, não é mesmo, Barbozinha? Ascânio não esperou o consentimento. Leonora escuta e mais uma vez se emociona.
Os estudos na Baía, o noivado, a doença do pai, a carta anunciando a ruptura e o casamento. Por que continuara a jurar amor quando já nos braços de outro? Dando-lhe o que jamais consentira a Ascânio nem ele sequer solicitara pois a supunha inocente, angélica, santa. Um bobo alegre. Dissera a dona Carmosina, confidente, boa amiga a sofrer com ele:
- Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais bela mulher, a mais doce e pura…
Afirmara pois não supunha possível tal milagre. Aconteceu, no entanto. A mais bela, a mais doce, a mais pura das mulheres, desembarca da marinete de Jairo.
Ergue-se Leonora. De frente para o mar, os olhos na distância onde o luar se dissolve na noite. Levanta-se também Ascânio, ia completar: a mais bela, doce e pura das mulheres, ademais rica, por quê? Pobre Secretário da Prefeitura de Sant’Ana do Agreste, soldo mesquinho, ai! Por que tão rica?
- Não chegou a falar de pobreza e riqueza. Trémula, os olhos húmidos, Leonora se aproxima, toca-lhe a face com a mão, oferece-lhe os lábios. Desce a correr, na boca o gosto do primeiro beijo. Foge por entre a lua e as estrelas, feliz e desgraçada.
Ascânio não tenta segui-la, está fincado ali, quando sair vai conquistar o mundo. Ah! um dia chegará diante dela e lhe dirá: não tenho para o luxo mas ganho para o sustento, vim te buscar. A lua desaparece na lonjura, no caminho do mar para as costas de África.
DO PRIMEIRO BEIJO EM FRENTE DA COSTA DE ÁFRICA, CAPÌTULO DE UM ROMANTISMO ATROZ COMO NÃO SE USA MAIS
Sentam-se no alto da duna, diante deles o oceano.
- Obrigado - diz Leonora.
- De quê?
- Do luar. Não foi você que encomendou?
- Ah! – descontrai-se um pouco – Gostou? Não lhe disse que São Jorge é meu chapa?
- Obrigado também por ter vindo.
Um calor no peito a emudecê-lo. Os ruídos da festa na povoação vêm morrer no embate das vagas com os cômoros. Qualquer assunto serve para vencer a mude:
- Festa de aniversário de Jonas, o chefe da colónia de pescadores. É maneta, o tubarão comeu-lhe o braço esquerdo.
- Tem tubarões aqui?
- No mar aberto, demais. Às vezes chegam até à praia. São audazes e vorazes. Qualquer descuido, é a morte.
Não é hora de lembrar a morte, talvez por isso retornam à contenção, ao retraimento, à timidez. Os dois em silêncio, reduzidos a furtivos olhares, ainda assim tão bom! A lua fincada no céu, feita de encomenda, exclusiva para eles. Luar de enamorados, próprio para se falar de amor. Isso é o que Ascânio pretende dizer. Ensaia a frase, morre-lhe nos lábios, finalmente explica:
- Do outro lado, a África.
- A África?
Ele aponta com o dedo, indica na distância:
- Do outro lado do mar.
- Ah!, sim. A África, eu sei. – não quer deixar morrer o diálogo. – Teve muito trabalho hoje?
Não é de geografia nem de problemas de administração que desejam se ocupar. Mas onde o ânimo para as palavras ardentes, a declaração de amor ainda usada pelos namorados em Agreste?
- A mesma coisa de todos os sábados: pedidos para consertar caminhos, limpar as fontes, pequenas benfeitorias, um mata-burros, um pontilhão. Leonora não pode imaginar a falta de recursos em Agreste. Já foi município rico, noutros tempos. Quando o avô de Ascânio era prefeito.
Ouvi dizer que você vai ser o novo prefeito.
- Penso que sim. Sabe por quê? Porque ninguém quer o posto. Mas eu aceito. Vou lhe dizer uma coisa, se quiser me chame de visionário. Tenho confiança, penso que tudo vai mudar e Agreste vai voltar ao que foi. Não suporto ver a minha terra nessa pasmaceira.
- É bom ter confiança, sonhar. Você louco por sua terra.
- Sou, sim. Quero que ela saia do marasmo em que afundou. Hei-de conseguir – toma alento, está embalado, disposto – a vida é engraçada. – A vida é engraçada. Não fez um mês, eu não tinha mais fé em nada, nem esperança. Escrevia carta nos jornais, reclamava ao governo, mas não acreditava em resultados. Agora tudo me parece fácil. Depois que…
- Depois quê?
- Que vocês chegaram. Tudo mudou, ficou alegre. Até eu.
- Por causa de Mãezinha, onde ela chega, espanta a tristeza. É a pessoa melhor do mundo.
- Devido a ela também. Mas para mim…
Leonora aguarda, lateja-lhe o coração descompassado. O vento traz farrapos de risos, sons de harmónica, o nome de Arminda gritado no forro. A voz de Ascânio rompe-se num lamento:
- Eu era um morto-vivo, não achava graça em nada. Vou lhe contar, se permitir. Ela se chama Astrud.
Para que contar? Quem não sabe em agreste? Dona Carmosina, romântica como Leonora, recitara as cartas para ela e Tieta, suspirara os detalhes tristes. Revoltara-se Leonora com o procedimento da fingida. Tieta apenas rira, não era de sentimentalismos, de amor se vive, não se morre, não é mesmo, Barbozinha? Ascânio não esperou o consentimento. Leonora escuta e mais uma vez se emociona.
Os estudos na Baía, o noivado, a doença do pai, a carta anunciando a ruptura e o casamento. Por que continuara a jurar amor quando já nos braços de outro? Dando-lhe o que jamais consentira a Ascânio nem ele sequer solicitara pois a supunha inocente, angélica, santa. Um bobo alegre. Dissera a dona Carmosina, confidente, boa amiga a sofrer com ele:
- Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais bela mulher, a mais doce e pura…
Afirmara pois não supunha possível tal milagre. Aconteceu, no entanto. A mais bela, a mais doce, a mais pura das mulheres, desembarca da marinete de Jairo.
Ergue-se Leonora. De frente para o mar, os olhos na distância onde o luar se dissolve na noite. Levanta-se também Ascânio, ia completar: a mais bela, doce e pura das mulheres, ademais rica, por quê? Pobre Secretário da Prefeitura de Sant’Ana do Agreste, soldo mesquinho, ai! Por que tão rica?
- Não chegou a falar de pobreza e riqueza. Trémula, os olhos húmidos, Leonora se aproxima, toca-lhe a face com a mão, oferece-lhe os lábios. Desce a correr, na boca o gosto do primeiro beijo. Foge por entre a lua e as estrelas, feliz e desgraçada.
Ascânio não tenta segui-la, está fincado ali, quando sair vai conquistar o mundo. Ah! um dia chegará diante dela e lhe dirá: não tenho para o luxo mas ganho para o sustento, vim te buscar. A lua desaparece na lonjura, no caminho do mar para as costas de África.
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