quinta-feira, março 05, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 69


DE COMO PERPÈTUA NEGOCIA A AJUDA DE DEUS PARA O TRIUNFO DOS SEUS PLANOS DIABÓLICOS


Anima-se a praia de Mangue Seco, no Domingo, com a chegada de uma quantidade de amigos sob o comando de dona Carmosina, espantosa e inconsciente no maiô lilás.

Até Perpétua se animara a acompanhar o grupo, o vestido negro, o luto fechado. Dona Milú desparrama alegria: não vinha a Mangue Seco há mais de seis meses. Não por falta de convite, observou o Comandante Dário. É verdade, convites não faltam e sobra o tempo, com a idade o que falta é disposição. Riem da mentira: não existe pessoa tão disposta; os anos passam, Mãe cada vez mais serelepe, confirma dona Carmosina.

Na lancha, Barbosinha tirara o paletó e a gravata, expusera-se ao vento apesar do reumatismo. Certa noite subira aos cômoros com Tieta, declamando versos escritos para ela, reunidos depois no livro de Poemas do Agreste (De Matos Barbosa, Poemas de Agreste, Ilustrações de Calasans Neto, Edições Macunaíma, Baía, 1953), formando a primeira parte do volume, intitulada Estrofes do Mar Bravio, o mar bravio, a arrebentação de Mangue Seco e o corpo aceso da livre pastora na chama do desejo. Duas gloriosas noites de amor e poesia, breves, transitórias. Os deveres de funcionário municipal obrigaram-no a regressar à capital. Ela prometera esperá-lo, sempre prometia. Alguns meses passados, carta de Agreste dava-lhe a notícia da partida de Tieta. Somente agora, vinte e sete anos depois, alquebrado e reumático, voltara a vê-la, mais formosa ainda, opulenta, livre pastora, mar bravio. Viúva, ele solteiro. Não casara, teria sido por causa de Tieta? Espera recitar-lhe nas dunas, ao luar, o grande poema que em seu louvor vem de escrever. Nele a proclama estrela-d’alva, sendo ele obscurecido astro de bruxuleante luz. Se unissem os seus destinos, no entanto, renasceria o poeta, sol irrompendo no mar de Mangue Seco. Escolhera o estilo condoreiro, bom para declamação.

Vieram Aminthas e Osnar, Fidélio e Seixas, comboiando Astério. O som moderno invade Mangue Seco, substituindo a harmónica de Claudionor das Virgens enquanto o trovador curte, em sono agitado, o pileque da véspera.

Onde está Ricardo? No primeiro momento, cercada, abraçada, beijada, Antonieta não se deu conta da ausência do sobrinho. Mas, diminuída a confusão, pergunta:

- E Cardo, cadê ele?

- Não pôde vir – explica Perpétua, contrafeita: - Padre Mariano foi realizar casamentos e baptizados em Rocinha, vai duas vezes por ano, em Junho e Dezembro, levou Ricardo que mandou pedir-lhe a bênção, ele lhe adora. Mas, sendo seminarista, teve de ir com o padre.

Tieta não responde nem comenta mas Perpétua percebe-lhe a decepção no franzir dos lábios e se alegra: a irmã rica sente a falta do sobrinho, está se apegando aos meninos. Ainda bem.

- Todos ao mar! – o Comandante ordena e é obedecido.

Calções, maiôs, biquínis desfilam diante da reduzida população de Mangue Seco. Ao contrário dos habitantes de Agreste, os pescadores não se escandalizam com a incontinente exibição de coxas e barrigas, bundas e umbigos. Ali, os meninos de catorze e quinze anos cortam as ondas nus, os corpos de bronze.

Única a não cumprir a ordem do Comandante – até dona Milú suspende a saia e vai banhar os pés no mar – Perpétua busca na praia, em baixo dos coqueiros, sombra defendida do sol e do vento. Tira do bolso da saia o terço, começa a passar as contas. No tempo do Major todos os anos vinham à praia, no verão. Vestindo decente traje de banho, enfrentava os perigos de mar; o Major tomava-a nos braços a pretexto de lhe ensinar a nadar, mãos indiscretas, arteiras. Deleites passados, não voltarão. Cabe-lhe agora pensar nos filhos, no futuro dos meninos. Viúva é mãe e pai, cumpre-lhe lutar. Os dedos nas contas do terço, os lábios na oração, o pensamento
nos planos concebidos
, em via de execução.

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