quarta-feira, março 18, 2009


Tieta do Agreste


EPISÓDIO Nº 74




Vidrou-se em Pipo, o primeiro a quem se deu por bem querer. Achava-o o máximo com os cabelos longos caídos pelo pescoço, despenteados; aos dezanove anos já citado nas páginas de esporte dos jornais, pinta de craque. Elevado dos juvenis para o time de cima na ausência do titular da ponta esquerda, abafou. Finalmente, o ponteiro ofensivo de que tanto necessita nosso futebol. Foi o começo do sucesso de Pipo, o fim do romance de Leonora.

- Não enche, civeta. Não se enxerga?

Vez por outra, se quiseres, numa folga dos treinos e das boates, quando de visita ao bairro, à família no cortiço em tudo igual àquele onde vivia Leonora.

Vez por outra, ela não quis; romântica, exigia carinho, doçura, amor, desejos absurdos naquele confuso labirinto.

Ainda chorava quando reencontrou Natacha, antiga vizinha, também de visita aos pais. Leonora lhe narrou a paixão e o abandono, da curra ela já sabia. Um punhal no peito, cravado pelo festejado Pipo, agora de automóvel, cercado de admiradores. Segundo a crónica esportiva, o sucesso está subindo à cabeça do rapaz, se continuar assim não irá longe.

Natacha, bem posta e perfumada, lhe falou da profissão de puta. Não contou vantagens, disse que dava para viver, se a fulana evitasse cafetões e gigolôs – para Natacha melhor que oito horas ou doméstica em casa rica. Para Leonora soara a hora decisiva – a fábrica ou a zona.

Dois anos andou aqui e ali, de mão em mão, em hotéis baratos, no quarto sem janela dividido do vizinho por um tabique, foi presa, medida correctiva, viveu desvairada paixão por Cid Raposeira.

Quando o conheceu, Cid atravessava uma fase calma, os médicos deram-no como curado sem dúvida para se verem livre dele. Magro, calado, Durão, quase sempre. De repente, terno e frágil. Para quem nada tivera, era bastante. Leonora se prendeu. Cid Raposeira odiava o mundo e a humanidade, mas exceptuava a companheira, um dia vou casar contigo e teremos filhos, sinal de crise à vista – amiudavam-se os ataques, cada vez mais curtos os intervalos de lucidez. Do carinho passava ao ódio, directo: sai da minha frente, demónio. Dias de xingos e tabefes, ameaças de morte, tentativas de suicídio, terminando no manicómio ou na delegacia. Passada a crise lá vinha ele humilde, esquelético, esfomeado, pedinchento, inútil. Leonora, um aperto no coração, varada de pena o acolhia. Não houvesse Raposeira partido com uma boliviana que transava drogas, talvez Leonora ainda permanecesse com ele, sem coragem de abandoná-lo.

Novamente Natacha mudou-lhe o curso da vida. Cruzaram-se na rua por acaso, num começo de tarde. Leonora perseguindo michês, Natacha, próspera, elegante, superiora.

- Agora, faço vida em rendevu. No melhor de São Paulo, o mais caro, o refúgio dos lordes, já ouviu falar?

Mediu Leonora cuja beleza não apenas resistira mas crescera, absurda beleza virginal, translúcida, os enormes olhos de água, os cabelos doirados, a face pura, toda ela recato e inocência.

Quem sabe Madame Antoinete lhe aceita. Você faz o tipo moça de família. Se quiser lhe apresento.

Madame Antoinete pôs as mãos nas cadeiras, estudou a recém-chegada:

- O que deseja?

Natacha antecipou-se:

- Leonora…

- Perguntei a ela, não a você, cabrita.

- Desejo trabalhar aqui se a senhora me aceitar.

- Porquê?

- Para melhorar de sorte.

- É casada? Já foi?

- Não mas já vivi uns meses amigada.

- Por que deixou?

- Ele me deixou.

- Por que foi ser rapariga?

- Para não ir para a fábrica. Antes tivesse ido.

- Tem algum homem? Algum rabicho? Cafetão, gigolô?

- Tive esse que falei, era doente.

- Doente? De quê?

- Esquizofrénico. Quando estava são era um cara legal.

- Filhos?

- Não, senhora. Não peguei nunca, nisso tive sorte.

- Sorte? Não gosta de crianças?

- Gosto demais. Por isso digo que tive sorte. Não tenho com que criar menino. Para passar fome, não quero.

- Já teve doenças? Não minta.

- A senhora quer dizer doença comprada, venérea?

- Isso mesmo.

- Me cuido muito, sempre tive medo. Sou asseada.

- Está bem. Vou fazer uma experiência com você. Pode começar hoje mesmo.

Alguns meses depois Lourdes Veludo, morenaço digno da melhor consideração, uma das três mulheres de residência fixa no Refúgio, deixou a casa para incorporar-se a um show de mulatas, espectáculo de sucesso com possibilidades de excursão à Europa. Madame Antoinette, que

apreciava a descrição e gentileza de Leonora, convidou-a a ocupar a vaga. Acontecera dois anos atrás.

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