Tieta do Agreste
ONDE É SUSPENSO O VÉU QUE ENCOBRE O PASSADO DA BELA LEONORA CANTARELLI E FICA-SE SABENDO DE TUDO OU QUASE TUDO
Lar, vida de família, calor humano, afecto verdadeiro, Leonora veio a conhecer quando, aos dezanove anos, chegou ao randevu do Refúgio dos Lordes e obteve aprovação de Madame Antoinette. Antes aprendera em curso intensivo a fome, a maldade, o desconsolo.
Na infância, caixa de pancadas. A qualquer pretexto, os pais batiam-lhe na cara, um e outro, a magra Vicenza e o troncudo Vitorio Cantarelli, quando não se batiam entre si – nem sempre Vitorio levava a melhor. Cinco filhos, quatro homens e ela, a caçula. Os homens foram caindo fora do cortiço, para as fábricas, ou má vida. Giuseppe morreu mocinho, sob as rodas de um caminhão, ao voltar para casa, bêbado. Puseram o corpo em cima da mesa, os pés sobrando, dependurados. Único a ter compaixão da irmã, Giuseppe afagava-lhe o rosto imundo, dava-lhe, vez por outra um caramelo. Ela completara treze anos e queria ir-se dali para evitar a fábrica, destino próximo.
Todos a achavam bonita e o diziam. Não para felicitá-la, não em elogio, em bom presságio e, sim, em lástima, em ameaça:
- Non saquelo che l’aspetta di éssere cosi bella.
- Bonita e pobre vai acabar mal.
Tinham razão. Rapazolas e homens perseguiam-na. Antes de ser púbere tentaram violá-la no campo de futebol invadido pelo capim. De que adianta chorar se mais dia menos dia há-de acontecer? Inexperiente, contou em casa, apanhou de Vicenza e de Vitorio para deixar de ser debochada, para não viver na rua se oferendo.
Frequentou a escola, aprendeu a ler e a fazer contas devido à merenda, devorada – a comida em casa insuficiente. Seu Rafael, dono da Pizzaria Etna, a barriga de nove meses, dava-lhe um pedaço de pizza dormida, de carne sentida, e lhe apertava os peitos enquanto ela engolia, sôfrega. A combinação durou meses e meses, nunca trocaram uma única palavra, estabeleceram e cumpriram em silêncio os termos do acordo. Um dia, vendo-a espiar os pratos expostos na vitrine, seu Rafael se adiantara, na mão um naco de pernil, mostrando-o como se atraísse um cão. Leonora entrara, ele avançou as duas mãos, uma a exibir a carne sedutora, a outra dirigida ao busto nascente, protuberâncias sem forma definida. A menina quis pegar o pedaço de pernil e sair, seu Rafael não deixou, sacudiu a cabeçorra proibindo: enquanto ela mastiga, ele apalpa, amassa, belisca os seios nascentes, corre-lhe a mão na bunda quando a gulosa volta as costas para ir embora. Assim Leonora pagou desde de cedo comida e formosura sem conseguir, no entanto, saciar a fome.
Os seios cresceram, a beleza também, visível mesmo na farda pobre de escolar – Leonora dava um jeito no corpo, tentação.
Aos quinze anos, a curra. Era fatal, disseram os vizinhos, assim bonita, desamparada e metida a moça. Quatro no automóvel, um bem mais velho, de barbas, os outros três muito jovens, a exibir revólveres. O mais brutal não aparentava sequer a idade dela, picou-lhe perna e braço com um canivete. O barbado permaneceu ao volante, os três adolescentes desceram, empurraram-na para o fusca, os passantes viram, deram-se conta, ninguém tomou sua defesa.
Quem é louco para se envolver com marginais armados, maconheiros? Levaram-na, serviram-se dela, espancaram-na, rasgaram-lhe o vestido, o único além da farda. Esteve na polícia, ouviu graçolas, um tira propôs encontro, os jornais noticiaram a ocorrência em duas linhas, facto corrente, sem impacto. Tivessem-na matado, a matéria ganharia certo interesse. Estupro, curra – bobagens. Se alguma vez pensara em casamento, abandonou a ideia. Queria apenas ir embora, fosse para onde fosse, com quem a quisesse levar.
EPISÓDIO Nº 73
ONDE É SUSPENSO O VÉU QUE ENCOBRE O PASSADO DA BELA LEONORA CANTARELLI E FICA-SE SABENDO DE TUDO OU QUASE TUDO
Lar, vida de família, calor humano, afecto verdadeiro, Leonora veio a conhecer quando, aos dezanove anos, chegou ao randevu do Refúgio dos Lordes e obteve aprovação de Madame Antoinette. Antes aprendera em curso intensivo a fome, a maldade, o desconsolo.
Na infância, caixa de pancadas. A qualquer pretexto, os pais batiam-lhe na cara, um e outro, a magra Vicenza e o troncudo Vitorio Cantarelli, quando não se batiam entre si – nem sempre Vitorio levava a melhor. Cinco filhos, quatro homens e ela, a caçula. Os homens foram caindo fora do cortiço, para as fábricas, ou má vida. Giuseppe morreu mocinho, sob as rodas de um caminhão, ao voltar para casa, bêbado. Puseram o corpo em cima da mesa, os pés sobrando, dependurados. Único a ter compaixão da irmã, Giuseppe afagava-lhe o rosto imundo, dava-lhe, vez por outra um caramelo. Ela completara treze anos e queria ir-se dali para evitar a fábrica, destino próximo.
Todos a achavam bonita e o diziam. Não para felicitá-la, não em elogio, em bom presságio e, sim, em lástima, em ameaça:
- Non saquelo che l’aspetta di éssere cosi bella.
- Bonita e pobre vai acabar mal.
Tinham razão. Rapazolas e homens perseguiam-na. Antes de ser púbere tentaram violá-la no campo de futebol invadido pelo capim. De que adianta chorar se mais dia menos dia há-de acontecer? Inexperiente, contou em casa, apanhou de Vicenza e de Vitorio para deixar de ser debochada, para não viver na rua se oferendo.
Frequentou a escola, aprendeu a ler e a fazer contas devido à merenda, devorada – a comida em casa insuficiente. Seu Rafael, dono da Pizzaria Etna, a barriga de nove meses, dava-lhe um pedaço de pizza dormida, de carne sentida, e lhe apertava os peitos enquanto ela engolia, sôfrega. A combinação durou meses e meses, nunca trocaram uma única palavra, estabeleceram e cumpriram em silêncio os termos do acordo. Um dia, vendo-a espiar os pratos expostos na vitrine, seu Rafael se adiantara, na mão um naco de pernil, mostrando-o como se atraísse um cão. Leonora entrara, ele avançou as duas mãos, uma a exibir a carne sedutora, a outra dirigida ao busto nascente, protuberâncias sem forma definida. A menina quis pegar o pedaço de pernil e sair, seu Rafael não deixou, sacudiu a cabeçorra proibindo: enquanto ela mastiga, ele apalpa, amassa, belisca os seios nascentes, corre-lhe a mão na bunda quando a gulosa volta as costas para ir embora. Assim Leonora pagou desde de cedo comida e formosura sem conseguir, no entanto, saciar a fome.
Os seios cresceram, a beleza também, visível mesmo na farda pobre de escolar – Leonora dava um jeito no corpo, tentação.
Aos quinze anos, a curra. Era fatal, disseram os vizinhos, assim bonita, desamparada e metida a moça. Quatro no automóvel, um bem mais velho, de barbas, os outros três muito jovens, a exibir revólveres. O mais brutal não aparentava sequer a idade dela, picou-lhe perna e braço com um canivete. O barbado permaneceu ao volante, os três adolescentes desceram, empurraram-na para o fusca, os passantes viram, deram-se conta, ninguém tomou sua defesa.
Quem é louco para se envolver com marginais armados, maconheiros? Levaram-na, serviram-se dela, espancaram-na, rasgaram-lhe o vestido, o único além da farda. Esteve na polícia, ouviu graçolas, um tira propôs encontro, os jornais noticiaram a ocorrência em duas linhas, facto corrente, sem impacto. Tivessem-na matado, a matéria ganharia certo interesse. Estupro, curra – bobagens. Se alguma vez pensara em casamento, abandonou a ideia. Queria apenas ir embora, fosse para onde fosse, com quem a quisesse levar.
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