quinta-feira, março 19, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 75


ÚLTIMO FRAGMENTO DA NARRATIVA, NA QUAL – DURANTE A LONGA VIAGEM DE ÓNIBUS-LEITO, DA CAPITAL DE SÃO PAULO DA BAHIA – TIETA RECORDA E CONTA À BELA LEONORA CANTARELLI EPISÒDIOS DE SUA VIDA


- Quando conheci Filipe, ele não era ainda comendador e eu ainda era Tieta do Agreste, meu nome no sertão, na cidade da Bahia, no Rio de Janeiro e em meus começos em São Paulo. Filipe tinha voltado da Europa.

Filipe Camargo do Amaral, aos cinquenta anos, considerava-se realizado como homem de negócios, empresário vitorioso em todos os sectores onde actuava. Realizado também como paulista, cidadão e homem. Na revolução de 32, não aceitou o cargo burocrático no gabinete do Governador, providenciado pela família tradicional, marchou para a frente do combate, praça voluntária e, ali chegando, foi imediatamente promovido a 1º Tenente, ajudante-de-ordens, um Camargo do Amaral não pode ser soldado raso. Terminou Major no Estado-Maior Revolucionário, redigindo manifestos e proclamações. Nascera rico fazendeiro do café, já com fartas colheitas e quatrocentos anos de cidadania ou mais, se for considerado o sangue indígena, algumas gotas, o suficiente para dar-lhe condição nativa, autêntico bandeirante.

Por conta própria tornou-se industrial, um génio para ganhar dinheiro, presidente de empresas, consórcios, bancos, entupido de acções e dividendos. Rápida passagem pela política. Deputado, em 1933, ao regressar do cómodo exílio em Lisboa, não disputou a reeleição. Faltava-lhe paciência para os inócuos debates, para as sessões chatas e, quanto à astúcia, preferia empregá-la melhor do que em trincas eleitorais.

Assim o fez, crescendo em riqueza e sabedoria.

- Filipe sabia viver e me ensinou. Eu era uma cabrita andeja, com ele virei madame. Aprendi com Filipe o valor do dinheiro mas aprendi também que a gente deve ser dono e não escravo do dinheiro.

Sabedoria para ele era viver bem. Não se deixar aprisionar pelos negócios.

Música, quadros, livros, boa mesa, boa adega, viagens, mulheres. Conheceu os cinco continentes. Europa e Estados Unidos de cabo a rabo, pagou montes de mulheres – mulher a gente paga de qualquer forma, o melhor é pagar com dinheiro, fica sempre mais barato e não dá aporrinhação. Bom chefe de família, vivendo em paz com a esposa, escolhida no seio da exportação do café, em clã de muita linhagem e maior pecúnia, doido pelos filhos: um com ele, lugar-tenente nas empresas, o outro irremediavelmente ancorada num laboratório de pesquisas científicas da universidade norte-americana onde estudara e permanecera, casado com gringa.

Felipe não tinha queixas da vida.

- Foi ele quem teve a ideia do Refúgio muito antes de me conhecer. O primeiro nome era francês.

A ideia propriamente não fora dele. Com um pequeno, seleccionado grupo de senhoras do mesmo padrão económico e de idênticos altos ideais, financiara benemérito projecto de diligente e encantadora amiga, Madame Georgette.

Um dos filhos de Felipe estudara nos Estados Unidos, o outro em Oxford, na Inglaterra. Ele, porem, preferia la douce France, familiar de Paris, guloso de vinhos, queijos e fêmeas. Quanto mais conheço outras cidades, mais gosto de Paris, dizia. Madame Georgette transportara para a capital paulista algumas especiarias francesas, condimentadas, picantes, às quais somara o melhor produto nacional. Perita na escolha das gentis parceiras.

O projecto referia-se ao estabelecimento de reservadíssimo rendevu a ser frequentado apenas pelos reis do latifúndio e da indústria – terras e fábricas, financeiras e bancos – pelos maiores da política, ministros, senadores; grandes das letras e das artes, excepcionalmente, para dar lustre à casa. Experiente e capaz, madame Georgette superou-se. Assim nasceu o Nid d’Amour onde os fatigados, nervosos senhores, repousavam em braços jovens, em colos perfumados, em dóceis e eruditas jeunes-filles.

Quando Filipe chegava de viagem, vinha farto de brancas, tinha um pendor pela cor morena, assim tostada igual à minha – minha bisavó foi negra escrava. Cabrita montês, queimada de nascença, fui-lhe servida com champanhe.

Madame Georgette conhecia o gosto de Monseigneur Le Prince Felipe – somente de príncipe o tratava – guardara para ele pitéu digno de tão fino paladar: Tieta do Agreste, morena de cabelos anelados, curtida no sol do sertão, educada nos bordéis dos povoados pobres, a flor da casa.

- Por que se engraçou de mim, não sei. O certo é que não me deixou mais.

- Que homem não se engraçaria, Mãezinha? Além de bonita devia ser saliente, uma brasa, imagino.

- Eu era bonita, sim, e esporreteada. Falava pelos cotovelos, ria à toa e quando topava parceiro de respeito, não tinha rival na cama, te garanto. Não sei se gostou de mim por isso ou porque acalentei seu sono.

O que prendeu Felipe e o fez constante? O conversê de moça a contar coisas do burgo e do sertão, da vida pacata, das cabras saltando sobre as pedras, do banho no rio? A competência? Ou o calor a desprender-se dela, a vida intensa e o gosto de viver? No quarto, com Tieta, sentiu-se jovem. Não mais o gasto senhor, refugiado no rendevu para repousar de afazeres com prostitutas de alta classe, a ser usada uma vez, quase nunca repetida. Madame Georgette mantinha vasto e renovado estoque, inumeráveis telefones no caderno azul, todas seleccionadas no capricho. Ficara assombrada quando Le Prince Felipe pediu de novo a cabrita sertaneja e, depois de umas quantas vezes a, reservou – não fará mais a vida, fica por minha conta, à minha disposição.

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