quinta-feira, março 26, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 82


INTERMEZO

Já ia distante a lua no caminho da África, pejada de ais de amor, quando por fim houve pausa e respiração. Desamarradas as coxas, separaram-se a vida e a morte, cada uma para seu lado, deixando de ser uma única coisa o acto de morrer e de ressuscitar. Antes compunham um corpo único, um só foguete explodindo no alto dos céus, desfazendo-se em luz sobre as vagas do mar. Antes, a noite de luar foi ao mesmo tempo dia de sol, sol e lua, dia e noite acontecendo juntos sem distâncias nem intervalos.

Quando por fim houve pausa e respiração, desapareceram o sol e a lua, as trevas cobriram o mundo, a noite despiu-se de calor e brilho, fez-se fria inimiga, ouviu-se na ressaca do oceano contra as dunas, na insana ventania transportando areia, a acta de acusação e a sentença. Mais além da vida, mais além da morte, ele pôde medir a extensão do crime. Para o castigo não havia medida humana, não se mede a eternidade.

Num esforço que lhe rompeu a garganta e o peito, reencontrou o exercício da palavra:

- Ai, tia! O que foi que a gente fez? Que é que eu fiz?

Um dia, em voto solene, jurara castidade, consagrara-se a Deus. Prometera renegar os prazeres da carne, casto filho de Maria e de Jesus. Traíra o voto.

- Me desgracei e desgracei a senhora, tia. Me perdoe…

Escuta sons de riso, em surdina, nascente de água em meio à tempestade. Mão de areia e vendaval toca-lhe a face culpada, dedos de unhas longas roçam-lhe os lábios, contendo o soluço: um homem não chora e a partir dali, do sucedido que era ele senão um homem igual aos outros, cravada no coração a marca do pecado? Igual aos outros? Pior, pois os demais não tinham assumido compromisso e o sangue de Cristo derramado na cruz os resgatara a todos, até ao fim dos séculos. Mas ele fizera voto, prometera, jurara, assumira compromisso. Traíra a confiança de Deus. No negrume enxerga as chagas se abrindo em pus no corpo perverso, a lepra. Dedos pressionando a pele dos lábios impedem o grito e o espanto.

- Tia, só quando houver gente, tolo. Não tendo, sou Tieta, tua Tieta. – Está rindo a infeliz, inconsciente, condenada por ele às penas do inferno. Rindo, alegre, não se dá conta do horror que cometeram.

O demónio o possuíra, o mais perigoso, o mais sagaz, e subtil, o pior de todos, o demónio da carne. Não se contentando em levá-lo à perdição, utilizara-o como instrumento para tentar e corromper a tia, para perverter viúva honrada, fiel à memória do marido, e transformá-la em fêmea enlouquecida, animal em cio, a gemer e a ganir, a berrar como as cabras nos oiteiros de Agreste. Ai, tia, que desgraça! A mão percorre os lábios, as unhas arranham a pele, ameaçando pausa e distância.

Possuída pelo cão, ela também. Excomungada por culpa dele, exclusiva, que tanto lhe devia: gratidão, respeito e puro amor de sobrinho e protegido. Não lhe mandara presentes de S. Paulo, não trouxera vara de pesca e molinete, não lhe dera dinheiro, camisa nova, pijamas que a mãe guardara para o seminário, não ofertara imagem e ostensório à Igreja, piedosa criatura? Alegre, informal, arrebatada, sim, mas generosa ovelha do rebanho de Deus, como a classificara padre Mariano. Alma pura, inocente coração, digna da estima do Senhor, da recompensa divina, proclamara o padre no sermão, durante a missa. Merecedora de todo o respeito e muita gratidão, para pagar o terno afecto, a bondade, as generosa dádivas.

A mãe recomendava cuidasse da tia, ficasse às suas ordens, fosse seu amigo. Por acaso obedecera? Buscara aproximá-la ainda mais de Deus e da Igreja como era a sua obrigação de sobrinho seminarista? Falara-lhe dos santos e dos milagres, contara os prodígios da Virgem e do Senhor, descrevera as maravilhas do reino dos céus? Nada disso cumprira. Ao contrário, pusera-se às ordens de Satanás na conquista da alma da tia, solerte instrumento do maldito. Antes servo de Deus, anjo consagrado, depois escravo de cão, obediente comparsa, cúmplice activo, anjo decaído.

- Me perdoe, tia…

A mão se alonga, cobre a boca inteira, a palma comprimida sobre os lábios, trincando os dentes.

- Não diga tia, diga Tieta.

Depois da morte próxima do leproso – primeira demonstração da ira divina – o castigo eterno, as chamas do inferno, para todo o sempre, sem apelo, sem repouso, sem intervalo, sem direito à contrição, sendo demasiado tarde para o arrependimento. Arrependimento? A mão rodeia a boca, as unhas raspam de leve.

No inferno para toda a eternidade, a carne pecadora e podre queimando e jamais acabando de queimar – salva ou condenada, a alma é imortal. Ouve o riso suave, nascido da ignorância, riso de quem não sabe da violência da cólera de Deus. Por detrás do manso balido satisfeito, ele escuta a gargalhada do diabo, sinistra, vitoriosa, insultante: duas almas ganhas de uma vez, numa só parada, duas a mais para a prática do pecado e para as chamas do inferno, boa colheita.

Tantos dias, tantas noites de trabalho. Porque ele lutara e resistira; com pequenas forças e armas mínimas; não possuía a estatura dos santos verdadeiramente dignos de servir a Deus, fortaleza da lei, dos mandamentos. Ainda assim resistira, lutara, erguera trincheiras: na banca, curvado sobre os livros, nas águas do rio mergulhando quando Peto, instruído pelo cão, dirigia-lhe a vista na bacia de Catarina; nas orações, antes de deitar-se na rede; em rogo e promessa, na missa – se a Virgem o salvasse, comprometia-se a dormir sobre grãos de milho durante todo o ano lectivo. Trincheiras conquistadas, destruídas uma a
uma pelo Coisa
Ruim.

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