domingo, abril 19, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 106


No Seminário e em Agreste escutara muita coisa sobre os hipies, opiniões as mais contraditórias, a maioria de violenta crítica. Ascético e feroz, Cosme, comentando notícias dos jornais, condenara os hábitos indecentes, perniciosos desses inimigos da moral, entregues à libertinagem e à droga, refogando a lei e os princípios sacrossantos, monstros da pior espécie. Dias depois, por acaso, quando no pátio procurava entender a Imitação de Cristo, preparando-se para a meditação espiritual da manhã seguinte, Ricardo surpreendera singular conversa, as vozes em discussão se elevando na roda próxima, formada por alguns padres, entre os quais o próprio Reitor, o reverendo ecónomo, o padre Afonso – o reverendo Alfonso de Narbona y Rodomon – e Frei Timóteo, frade franciscano, vindo de São Cristóvão, para dar a aula semanal de Teologia Moral no Seminário Maior, cuja sapiência e santidade corriam mundo.

Parecendo um caniço de tão magro, os cabelos revoltos, a barba rala, os olhos de água pura e a voz mansa, defendera os hipies dos ataques de Dom Alfonso de Narbona y Rodomon, a vociferar em dura mescla de espanhol e português.

Nobre castelhano e guarda-costas de Deus e da pureza da fé, leão-de-chácara dos bons costumes, vigário do Cardeal de Aracaju e professor de Teodicéia no Seminário Menor, Dom Alfonso era conhecido entre os fiéis pela alcunha de Labareda Eterna devido à virulência dos sermões repletos de ameaças aos pecadores.

Indiferente à veemência da condenação total aos hipies, enunciada em rude portunhol pelo fidalgo de Castela, Dom Timóteo os considerou não só filhos de Deus, como nós todos, mas os promoveu a filhos bem amados pois renegam a hipocrisia, refugam a mentira, levantam-se pacíficos contra a falsidade, contra o cinismo anti-humano da sociedade actual, enfrentam a impiedade e a corrupção do mundo, suas armas são flores e canções, sua bandeira a de Cristo: paz e amor. Condenável a maneira como agem? Que desejava Dom Alfonso? Que eles tomem das armas, das bombas, das metralhadoras? Vão pelo mundo dando o bom exemplo da alegria de viver. Perseguidos como sempre o foram todos os reformadores, os rebeldes, os contestatários da ordem vigente e podre.

Os padres ouviram sem vontade ou sem coragem de contestar; o renome de Frei Timóteo, sábio e santo, fazia-o carismático, os reverendos curvavam-se à sua passagem e o bispo Dom José o tratava de meu pai. Opiniões contraditórias, polémica desatada, mas nos ouvidos de Ricardo ficara ressoando a voz serena do franciscano a repetir as palavras paz e amor, divisa de Cristo, saudação dos hipies.

Demorou-se com os dois companheiros espiando de longe o acampamento, onde rapazes e moças pareciam indiferentes ao tempo, sentados em grupo a conversar. Alguns trabalhavam metal e couro, um magricela tocava violão, outro descansava a cabeça no colo de uma jovenzinha, todos vestidos com aquelas roupas mal cuidadas, com rasgões e remendos, colares nos pescoços, multicolores, símbolos místicos. Alguns descalços, sobretudo as mulheres.

Ricardo viu de longe e pouco; quando um dos rapazes propôs chegarem até lá, recusou, necessitando voltar a Mangue Seco onde os operários esperavam material para as paredes da casa de veraneio da ingrata.

Agora do alto dos cômoros, ele observa os dois casais e a menina. Reconhece o magricela que dedilha o violão, vira-o na véspera. Deitaram-se na areia os quatro, a criança recolhe conchas, vem trazê-las para a mãe.

Os olhos de Ricardo voltam-se para a lonjura do rio nas primeiras sombras do crepúsculo. Que faz a tia, por que não volta? Por que o deixa ali, sozinho, sem a presença, a voz, os confusos argumentos ainda assim consoladores, a mão, os lábios, o seio acolhedor, o ventre em febre onde todos os problemas se resolvem, as dúvidas se desfazem, a aflição e o tormento transformam-se em alegria e exaltação? Estaria ausente apenas uma noite, uma, tão-somente, garantira. Duas já ele atravessara, insone e desolado.

Talvez porque a música houvesse cessado, Ricardo retorna o olhar vazio de esperança e fita a praia. Os casais despiram-se, o jovem de violão e a rapariga risonha trocam um longo beijo, estreito abraço. O rapaz escuro e a moça loira, com a menina, adiantam-se para o mar, quem sabe na intenção de banhar-se. Os cabelos da mulher rolam pelas espáduas, tocam-lhe as ancas. Ricardo põe-se de pé, grita, avisando do perigo. Para enfrentar as vagas que retornam enfurecidas da luta contra as dunas e se preparam para novo embate, é necessário ter nascido e crescido em Mangue Seco, na selvagem violência do oceano e do vento desatados. O perigo é mortal, sem falar na sombra fatídica dos tubarões.

O grito perde-se na ventania, não alcança a praia, pai, mãe e filha adentram-se no mar. Ricardo dispara cômoro abaixo, nem repara no outro casal a fazer amor, joga-se na água exactamente quando o vagalhão descomunal encobre os banhistas, derruba o rapaz e a moça, arranca a menina da mão da mãe e a arrasta para longe. Uns minutos mais e o pequenino corpo será lançado pelo mar contra a montanha de areia transformada em pedra.

Ricardo mergulha, desaparece sob as ondas, quando surge mais adiante trás a criança presa contra o peito. Utiliza apenas o braço livre para nadar. Recordando conhecimentos adquiridos na infância, submerge outra vez para aproveitar a força da vaga no retorno. Durante um instante infinito, da praia enxergam apenas o braço erguido, sustentando a menina fora de água. E se não conseguir retornar, se perder a força e arriar o braço? Só respiram quando ele se alça em meio à espuma, liberto das vagas.

A mãe atraca-se com a filha, buscando sentir-lhe a respiração, treme da cabeça aos pés. O pai tenta dizer alguma coisa, não consegue, a voz estrangulada. O outro casal já não faz amor; estão os quatro de pé, unidos na angústia e no alívio; nus, de corpo e alma.

Ricardo apenas os enxerga. Ouve por fim o choro da criança, sorri e sai correndo enquanto a noite tomba de vez, sem prévio anúncio, noite de quarto minguante, dunas fantasmagóricas. Nas
trevas da noite acorrem os demónios.

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