terça-feira, abril 21, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 109


DA MEDITAÇÃO
ESPIRITUAL



Ainda adormecido, percebeu um rumor de risos alegres, som de violão e a melodia de um acalanto tão bonito e apaziguante que nele se embalou, encontrando por fim Tieta num extenso e tranquilo território de campo e praia, morros e dunas; nua com um bordão de flores retirado do altar de São José, ela conduz irrequietas cabras, leva-as a pastar nas ondas. Os pés alados não tocam a areia, tampouco os de Ricardo. Dão-se as mãos e se encaminham, limpos de corpo e alma, inocentes, para a mão de Deus aberta para recebê-los. Deus contem o mundo em seu regaço: o campo, a praia, o mar, as cabras e os amantes.

Soam então as trombetas do juízo final, terna cantiga de ninar e o profeta Jonas, velho pescador de contrabandos, eleva-se das águas, cavalgando um tubarão, e proclama a verdade inconteste do Senhor: nenhum homem seja rico ou pobre, velho ou moço, forte ou fraco, pode viver sem mulher, nem mulher sem homem, é contra a lei de Deus. Ruem as muralhas do mar, quando Jonas, esticando o cotoco do braço, ensina que o amor não é pecado, nem mesmo de tia com sobrinho, de viúva com seminarista. Uma menina vem e orna de flores os cabelos de Tieta e os de Ricardo e diz paz e amor, numa voz de passarinho.

Música e canto prosseguem além do sonho e, aos toques do dedo da criança, Ricardo descerra os olhos. Recorda-se do desvario da noite do ciúme, da desesperada prova de natação, da queda, exausto e nu, sobre a areia onde dormira e ainda se encontra. A menina lhe entrega a última flor, açucena do campo; ele está cercado por uma roda de moças e rapazes, algumas crianças, algumas crianças, todos igualmente nus e sorridentes, a cantar para ninar seu sono. Acalanto a aquietar-lhe o coração, uma canção estranha, portadora de paz e alegria, música celeste. O violão que o magricela tange sobre o peito é harpa de anjo. Ricardo senta-se devagar, sorri.

Não se importa de estar completamente nu, nem repara, admirado ou curioso, com malícia ou cobiça, na nudez em torno, olha simplesmente e vê as moças belas, algumas quase meninas de tão jovens, os rapazes barbudos ou imberbes.

Cabelos compridos, por vezes rolando sobre os ombros, não eram assim os cabelos de Jesus? Noutros, as crespas cabeleiras desabrocham em grandes flores desfiadas ou em emaranhados ninhos de pássaros. A roda prossegue em canto e dança, ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Ricardo põe-se de pé.

Encontra-se completamente livre do medo, da servidão, do pecado. Na barra da manhã, a dança e o canto, o sorriso, a tranquila face das moças e dos rapazes restituem-lhe a alegria e a paz perdidas.

Libertos do tempo, sem pressa e sem horário, cantam e dançam para ele na atmosfera azul onde nasce o dia. Uma das moças, a mãe da menina resgatada das ondas, na véspera, deixa a roda, se aproxima e o beija na face e sobre os lábios e Ricardo conheceu então a fraternidade, soube-lhe o significado e o gosto. Depois, correram todos para o mar e as crianças, tomando-o pela mão o conduziram.

Tudo era mistério, sonho, fantasia. Sobre as águas serenas a manhã desponta, enquanto moças e rapazes cortam as ondas mansas e as crianças recolhem conchas azuis, vermelhas, brancas, cor-de-rosa. Alguns casais amam-se na madrugada mas Ricardo não procura ver nem saber, estendido entre eles na praia, em silêncio, cercado de conchas que as crianças lhe oferecem.

Depois, tomando das roupas velhas, desbotadas, rotas, poucas e precárias, reunindo a meninada, nada lhe pediram e sim lhe deram alguma coisa grande, antes desconhecida para ele, uma pureza nova, não aquela do seminário dependente do medo e do castigo; agora o pecado já não existe. Nem o demónio, nem a maldade, nem o desespero varridos da face da terra. Para sempre.

Da fímbria da praia, do começo do mar, gritam em despedida: paz e amor; e vão-se embora. Paz e
amor, irmão. Ricardo ficou parado, quieto e redimido.

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