quarta-feira, abril 08, 2009


Tieta do Agreste


EPISÓDIO Nº 95



Tieta abandona os cremes de limpeza e o espelho, toma das mãos da moça, acaricia-lhe a crina loura, nem às irmãs queria tanto quanto àquela desditosa recolhida no trotoar, a pequena Nora, marcada pela má sorte e todavia capaz de sonho e esperança.

- Eu sei que nunca vai contar, conheço minhas cabritas, ai de mim se não as conhecesse. O que tu deve fazer? Aproveitar as férias, divertir-se. Namore o rapaz, ele é simpático e bonitão, um pedaço de homem. Um pouco ingénuo para o meu gosto mas direito. Durma com ele se tiver vontade. Tu deve estar morta de vontade, não é?

Leonora abana a cabeça afirmativamente e logo esconde o rosto nas mãos, Tieta vem sentar-se a seu lado na cama, prossegue:

- Durma com ele, passei, namore, goze a vida mas não se prenda. Tome cuidado para evitar escândalo. Só não entendo por que você ainda não dormiu com ele.

Ele pensa que sou virgem Mãezinha. Nunca vi ninguém tão crédulo e respeitador. Não tenho palavras nem coragem para contar que não sou donzela. Tenho medo que ele se desiluda, não queira mais me ver.

- É capaz. Agreste não é São Paulo, é o cu do mundo, parou no século passado. Aqui, ou bem se é moça cabeçuda ou rapariga de porta aberta. Não viu o que se passou comigo?

Pai me mandou embora, me mandou ser puta longe daqui. Faz muito tempo mas continua sendo a mesma coisa hoje. Quem sabe, com jeito…

- Que jeito Mãezinha? Ele pensa que sou donzela, que sou rica, filha e herdeira do Comendador Filipe. Fica inibido até para me pegar na mão porque ele é um pobre de Jó e eu sou milionária. Sabe que ele ainda nem se declarou? Insinua umas coisas, suspira, parece que vai falar, engole em seco, fica calado, segura em minha mão, não sai disso. Em Mangue Seco fui eu que beijou ele. Fora daí, roça os lábios no meu rosto quando se despede e nada mais.

- Eu vi, estava espiando, é de não acreditar. Coitado do rapaz, deve estar desperdiçando o ordenado na casa de Zuleika para se desforrar, ou gastando a mão se lhe faltar dinheiro – sorri para Leonora: Siga meu conselho, deixe o barco correr, dê tempo ao tempo, vá se divertindo. Pelo menos assim você não se chateia.

- Me chatear? Mãezinha vou-lhe dizer: esses dias aqui foram os únicos felizes da minha vida. Estou amando. Pela primeira vez, Mãezinha. Com Pipo e Cid foi outra coisa, nem de longe se parece. Já lhe contei, se lembra?

Diante da adolescente massacrada no sórdido cortiço, Pipo, com o nome repetido nos rádios de pilha, a fotografia nos jornais, aparecia como a personificação dos invencíveis heróis das histórias aos quadradinhos, dos filmes de aventuras, das séries de televisão. Ser sua garota causava inveja a todas as demais chivetas da rua. Quando ele a chutou, sofrera principalmente na vaidade. Vez por outra podemos dar uma metida, se quiser, dissera Pipo, cheio de si. Isso jamais. Não aceitara a humilhação, pretendendo-se a única, a inspiradora dos golos marcados pelo craque nos matches de futebol.

Chorara a semana inteira com a gozação da vizinhança mas dele mesmo não sentia falta.

Quando no inferninho asqueroso onde caçava o michê que lhe garantisse a comida do dia seguinte, encontrou Cid Raposeira na solidão, na droga, no abandono, amarfanhado rosto de Cristo, tão necessitado de companhia e ajuda, vibrara o coração de Leonora, sensível e solidário. Iniciou-se o trajecto do interminável desespero, alternando-se os raros dias de carinho e humildade, com os de loucura e violência desatadas. Menos que companheira e amante, sentira-se enfermeira, samaritana, irmã a cuidar de alguém ainda mais desgraçado do que ela. Casal de párias perdidos na metrópole fechada em pedra e em fumaça, sem condições de alegria e felicidade. Um e outro, o glorioso Pipo e o contraditório Cid, nada tinham a ver com o renitente sonho de lar e paz, de carinho, de amor.

- É amor, sabe, Mãezinha? Uma coisa diferente. Tudo o que eu queria era ficar aqui, com ele, nunca ir embora.

Comove-se Tieta, pobre Leonora, escorraçada cabrita. Afaga-lhe os cabelos, belisca-lhe a face:

- Não é que eu seja contra, minha filha, é que não vejo jeito.

No jantar em casa de dona Milú, observando Leonora e Ascânio em idílio, Tieta já se preocupara. Fosse simples aventura, beijos, apertos, umas quedas na beira do rio, nos esconsos das rochas, nas areias cálidas de Mangue Seco, bons lugares para descarregar a natureza, não teria maior importância, bastando manter a descrição para evitar a língua do povo de Agreste longa e afiada. Se caísse na boca do povo, paciência. Nora partiria em breve para nunca mais voltar, pouco lhe interessava
a imagem que dela guardassem aqueles tabacudos.

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