sexta-feira, abril 10, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 97


DA FAMÍLIA REUNIDA NO CARTÓRIO PARA A SOLENIDADE DA ESCRITURA


Para assistir à solene cerimónia da escritura definitiva de compra e venda da casa antes propriedade de dona Zulmira, que passará a pertencer, após tais formalidades e o respectivo pagamento, a dona Antonieta Esteves Cantarelli, a família Esteves encontra-se reunida no cartório do doutor Franklin Lins, à excepção do moço Ricardo, seminarista em férias em Mangue Seco, ocupado com encargos da tia paulista rica (e louca).

Apoiado no bordão, a mascar fumo de corda, de tão contente, o velho Zé Esteves não cabe no larguíssimo terno de festa, feito sob medida nos tempos da abastança, cortado em boa casimira de contrabando, mandado tingir de negro para o casamento de Elisa, retirado do baú para a chegada de Tieta.

Pela segunda vez o veste em poucos dias, volta a ser alguém. Muito em breve estará habitando casa de qualidade, em artéria central, retirado pela filha pródiga do casebre de canto de rua, de moradia e endereço desmoralizantes.

Se dependesse dele, mudaria hoje mesmo, apenas dona Zulmira acabasse de retirar os seus teréns. Antonieta, porém decidira fazer alguns reparos na casa, consertar banheiro e latrina, pintar as paredes, retelhar, luxos de paulista; ele resmungara mas não discutira: quem paga manda.

Sob o comando da filha, sua vida se refaz. No cartório, ouvindo doutor Franklin ler os termos da escritura, controlando as horas no relógio de ouro, marca Ómega, sinal de sua restaurada importância, Zé Esteves escuta berro de cabras que se aproximam aos saltos sobre os cabeços dos morros, enxerga terra e rebanho. Junto a ele, humilde sombra do marido, Tonha, silenciosa e conformada. Casebre acanhado e pobre, vivenda ampla e rica, rua de frente ou beco lamacento, tudo lhe serve e basta, desde que esteja em companhia do amo e senhor. Há muito aprendeu a obedecer e conformar-se.

Perpétua, rígida no luto inapelável, traja vestido caro, reservado para a festa da Senhora de Sant’Ana; na cabeça a mantilha por Leonora. Atenta, disposta a impedir que na escritura seja introduzida cláusula capaz de prejudicar os interesses de seus filhos, sobretudo os de Ricardo, herdeiro presuntivo. Com o Velho todo o cuidado é pouco: passa o tempo bajulando Tieta, insinuando misérias contra as outras duas filhas, pedinchando. Ainda na véspera a arrastara para um canto da casa, fora resmungar segredos, intrigas certamente, na tentativa de jogá-la contra as irmãs. Perpétua não perde uma palavra sequer das cláusulas e adendas.

Pela mão mantém seguro o filho Peto. Esgrouvinhado maldizendo os sapatos – usa alpergata aberta quando não pode andar descalço – o menino não entende por que motivo a mãe o obriga a estar ali, parado, envergando meias, camisa limpa, a ouvir o doutor Franklin ler, com a voz mais descansada do mundo, um rol de páginas de nunca acabar. Se a tia e a prima Nora ao menos estivessem à vontade, nos robes colantes, mal fechados, a vista ajudaria a passar o tempo. Mas uma e outra puseram-se nos trinques, tão compostas nunca as vira. Um saco!

Elisa e Astério escutam, reverentes: ela, o olhar de adoração posto em Tieta; ele de cabeça baixa, fitando o chão. Nem mesmo Leonora, semi-escondida no fundo da sala, pode competir com o porte majestoso de Elisa: a massa de cabelos negros, o busto erguido, as ancas altaneiras, elegante como se fosse desfilar numa passerela, o ar entre modesto e altivo, um deslumbre. Casa em Agreste, tenha quem quiser, ela não. Da generosidade da irmã rica, aguarda mercê muito diferente: convite para acompanhá-la a São Paulo, para ir de muda, para irem ela e o marido, pois sozinha Tieta não a levará. Emprego para Astério numa das empresas da família Cantarelli; para Elisa, um lugar no coração e no apartamento da irmã, se possível o ocupado até agora pela enteada Nora.

Tudo quanto Elisa deseja é dar as costas a Agreste, limpar no caminho a poeira dos sapatos, nunca mais voltar. Há-de conseguir: Tieta veio para ajudar a todos eles, transbordante de bondade e compreensão. Ademais, Elisa recorrera aos bons ofícios de dona Carmosina, amiga provada, a protegê-la desde menina, e íntima de Tieta. Pedira-lhe para interceder junto da irmã, possibilitando a realização do projecto de mudança. Em São Paulo a vida a aguarda, a verdadeira, repleta de acontecimentos e sensações, não essa apatia de Agreste, esse cansaço do sem jeito. O doutor Franklin emposta a voz nos termos jurídicos, Elisa ouve o excitante rumor das ruas atulhadas de automóveis luxuosos, num frémito ouve a fala cariciosa dos homens elevando-se à sua passagem quando à tarde comparece à rua Augusta, indo de compras com Tieta.

Astério ouve pensativo, um tanto contrafeito. O sogro vai ter onde habitar com decência e conforto, na casa da filha; será como se possuísse casa própria. Filha magnânima, Tieta. Outra qualquer guardaria ressentimento do pai que a pusera no olho da rua, da irmã que a delatara. Ela, não. Regressara com as mãos pejadas de dádivas para cada pessoa da família.

Durante dias e dias, Astério se perguntara por que, na distribuição dos benefícios, naquele esbanjamento, a cunhada ainda não se fixara na irmã mais moça e no cunhado, reduzidos aos presentes da chegada. Sendo eles os mais precisados, no entanto, pois Zé Esteves, se nada tinha de seu, recebia farta mesada e praticamente não gastava dinheiro, barraco e comida custando-lhe ninharia, enquanto ele e Elisa viviam em eterno aperto, a loja e a ajuda dando na exacta. Perpétua não precisa de auxílio, tem de um tudo, mansão onde residir, casas de aluguel, pensão do marido, dinheiro na caixa Económica, em Aracajú, e a protecção de Deus.

A protecção de Deus, sim, ria quem quiser – não lhe tem faltado. Ao que Elisa soube e lhe contou, a ricaça abrira em banco de São Paulo caderneta de poupança para os dois sobrinhos. Ele e Elisa nem filhos possuem, sobrinho a merecer protecção da tia milionária. Toninho morrera e não fosse dona Carmosina gostar tanto de Elisa não se sabe como teria terminado aquele assunto: a mentira vil, a notícia surripiada, chantagem suja.

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