sexta-feira, abril 17, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº104




- Vou falar com ela, não vai ser fácil. Mas você tem toda a razão, não se pode arriscar. Já pensou? Ai, meu Deus!

- A vida é uma confusão, não dá para se entender. Elisa só pensa em ir para São Paulo. Leonora agora deu para falar que quer viver em Agreste, não quer sair daqui, nunca mais.

Um sorriso aparece, clareando o rosto anuviado de dona Carmosina, aquele era um tema exaltante. Aproximou-se do rio, cresce o rumor da correnteza sobre as pedras, rolam estrelas do céu, desfazem-se nas sombras.

- É verdade, ela me disse que decidiu não ir mais embora. Conversamos muito, Nora e eu, nesses dias que você passou em Mangue Seco. Ela está gamada, morta de paixão. Coisa mais linda, Tieta. Dois desiludidos, dois… – busca na memória a palavra moderna, lida há poucos dias no artigo da revista … - carentes que se encontram, dão-se as mãos e se completam. Está disposta a ficar aqui.

- E você pensa que ela vai se acostumar nestes confins? Por ora, está feliz porque no namoro com Ascânio esquece o que sofreu e ela sofreu como cabrito desmamado. Mas, depois? Eu nasci aqui e aqui quero terminar meus dias mas só voltarei de vez quando estiver velha, coroca. Antes, só a passeio. Para quem chega da cidade grande, acostumar em Agreste não é fácil. Mesmo quem nunca arredou os pés daqui se queixa da pasmaceira, veja Elisa. Se eu imaginasse o que ia acontecer, não teria trazido Nora. É uma tolona, sentimental, acaba perdendo a cabeça, afeiçoando-se a Ascânio, vai dar problema.

- Eu sei. – Dona Carmosina suspira, dramática que nem autor de folhetim em cena de culminante, de novela de rádio em fim de capítulo. – Ela é milionária e ele é pobre! Mas…

- Não é por isso, Carmô, todos os dias a gente assiste a casamento de rico com pobre. Você pensa que eu ia me preocupar se o problema fosse esse? Já estaria cuidando do enxoval.

- Qual é então?

Tieta detém-se na beira do caminho para dar maior ênfase à confidência, persiste o clima de melodrama, o suspense. Dona Carmosina espera, tensa, incapaz de esconder a impaciência:

- O quê?

- Você sabe que ela foi noiva de um vigarista que só queria o dinheiro dela. Botou máscara de engenheiro, fachada não lhe faltava mas era tudo. Ela, cega de paixão, querendo financiar uns projectos do tipo, só não largou o dinheiro porque eu manjei a coisa e manerei. Foi quando a polícia apareceu atrás dele e se ficou sabendo da ficha completa do patife. A pobre caiu de cama, quase morreu. A mim não me surpreenderam as revelações da polícia, não me engano com as pessoas, bato os olhos num fulano e já sei o que vale, a qualidade do carácter e o tamanho do cacete…

Dona Carmosina, descontraindo-se, explode numa gargalhada:

- Mulher mais maluca, nem depois de morta vai tomar jeito. Inventa cada uma: a qualidade do carácter, o tamanho do cacete… Essa é boa! – perdida em riso, refaz-se aos poucos, volta ao amor de Nora e Ascânio. – Disso tudo eu já sabia, você mesma tinha me contado. E é por isso que eu digo: dois feridos que convalescem, dois carentes – Dona Carmosina aproveita para repetir a palavra recém-aprendida – que se completam. Se o problema da diferença de fortuna não atrapalha, então…

- Acontece que ela foi noiva desse tipo uns bons seis meses, Carmô. Noivado em São Paulo não é como em Agreste. Lá, namorados e noivos têm muita liberdade, saem sozinhos para festas, para boates, fazem passeios que duram dias e dias… noites e noites… As moças andam com a pílula na bolsa, junto do batom.

- Estou entendendo…

- Pois é. Esse negócio de noiva casar virgem, já era, como dizem os cabeludos. Só vigora em agreste. O facto dele ser pobre não tem nenhuma importância, Nora não a mais mínima para isso. Nem ela nem eu. Mas você acha que nosso amigo Ascânio… - uma pausa. . – É por isso que estou preocupada, Carmô.

- Agora, quem fica preocupada, sou eu. Preocupadíssima. Por que a vida é tão complicada, Tieta?

- Sei lá! E podia ser tudo tão fácil, não é? Porca miséria!, como dizem meus patrícios, os italianos de São Paulo.

Voltam a andar, dona Carmosina digerindo a incómoda revelação, ai, meu Deus, o que fazer? Tieta completa antes que alcancem as margens do rio:

- Agora que comprei a casa, mandei arrumar e pintar, instalo os velhos, deixo dinheiro com Ricardo para acabar de construir o barraco em Mangue Seco, pego Leonora e vou embora.

_ Você não pode ir embora antes da inauguração de luz, já lhe disse. De jeito nenhum.

- Tinha pensado em ficar mas não posso. Não é tanto por mim, se bem não deva me retardar demais, deixei em São Paulo tudo o que é meu na mão dos outros…

- Na mão de gente de confiança…

- Mesmo assim. Quem engorda o porco é o olho do dono. Eu ficaria para a festa se não fosse por Nora. Preciso tirar ela daqui enquanto é tempo. Ela não aguenta outro baque, pode até morrer…

- Não se precipite. Espere uns dias, quando você voltar de Mangue seco eu lhe direi alguma coisa.

- Sobre? - Ascânio e Leonora…

- A vida pode ser tão fácil, a gente mesmo é que complica tudo.

Atingem a beira do rio, as canoas descansam no ancoradouro. Um pouco além, na Bacia de Catarina, os pés de chorão debruçam-se sobre os penedos, aumentam a escuridão. A brisa traz um leve gemido, vem daquelas bandas. As amigas avançam uns passos com pés de lã. Vultos nos esconsos; sussurros, ais, sob os chorões. A vida pode ser tão fácil, repete Tieta. Sorriem as duas comadres, a bonita e a feia, a que conhece o gosto e a carente (para usar a palavra da moda, tão do agrado de dona Carmosina) Tieta anuncia:

- Já escolhi o nome para a minha cabana em Mangue Seco:

- E qual é?

- Curral do Bode Inácio. Era o garanhão do rebanho do Velho, um bode que mais parecia um jegue de tão grande.

O saco arrastava no chão. Com ele aprendi a querer e a conseguir.

Multiplicam-se os ais de amor na ribanceira. Apressadas as duas amigas retomam o caminho da casa cheia em cuja sala de visitas o vate Barbozinha, em encarnação anterior, à frente do povo de Paris, assalta e conquista a Bastilha, liberta milhares de patriotas aprisionados. Magnífico episódio, com espadas e arcabuzes, fidalgos, tribunos, a carmanhola e sem perigo de cadeia.

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