segunda-feira, junho 22, 2009


DE REGRESSO DE FÉRIAS, COMO PROMETIDO, CÁ ESTAMOS PARA CONTINUAR A HISTÓRIA DA TIETA.





TIETA DO
AGRESTE
EPISÓDIO Nº 162





DA FORMOSA LEONORA CANTARELLI, ESTENDIDA NA REDE, ENTRE CABRAS E BALEIAS, SOB UM SOL AZUL


A formosa Leonora Cantarelli, estendida na rede, na varanda da casa de Perpétua, recolhe o apressado beijo de despedida de Peto, cujas obrigações de torcedor, acrescidas do receio de receber castigo devido a imprudentes palavras, chamam-no ao bar onde, a partir das cinco, começa um torneio de bilhar disputado pelos melhores tacos da cidade. Peto não dispensa o beijo da prima quando chega e se despede. Leonora diverte-se com as manhas do garoto, a esperteza e os olhos astutos. Fora disso, terno e solícito, sempre às ordens das parentes paulistas, pronto para qualquer serviço. Pela tia Antonieta tem verdadeira idolatria, o que não impede de brechar-lhe os decotes, de alegrar a vista nos detalhes expostos.

Após a partida de Barbosinha para a Agência dos Correios, Peto permanecera fazendo companhia a Leonora, narrando-lhe peripécias da pesca. Saíra rio abaixo naquela manhã, com Elieser, na lancha. O peixe mordia que dava gosto, carapebas enormes; o molinete e a vara trazidos de presente pela tia Antonieta para Cardo revelavam-se legais paca. Voltara com o samburá cheio de carapebas e robalos deste tamanho – marcava o tamanho com as mãos – dera à tia Elisa, comeriam no jantar peixe pescado por ele, Peto, rei do isco e do anzol.

Tia Elisa é legal no tempero, de se lamber os beiços. Bonita também, a mulher mais bonita do agreste, para comparar-se com ela só mesmo Leonora.

- Entre a tia e a prima o páreo é duro. Se eu tivesse que escolher ficava com as duas.

As antenas sempre ligadas, Perpétua escuta ao passar, repreende:

- Que falta de respeito é essa, moleque? Quer ficar de castigo?

Peto capa o gato antes que a mãe o mande fazer uma hora de banca ou o obrigue a acompanhá-lo à Igreja para a chatice das devoções vespertinas; no bar os campeões devem estar se reunindo. Pisca o olho para Leonora, rouba-lhe o beijo e quando Perpétua o procura – cadê esse endemoninhado? – não lhe percebe nem o rasto. Queixa-se do filho mais moço enquanto explica a Araci como arear os talheres para deixá-los reluzindo; aproveita a presença da moleca para uma faxina geral, a casa anda um brinco.

- Esse menino me consome a vida. Ricardo não me dá trabalho mas Peto não sei a quem saiu. Parece filho de Tieta… - tapa a boca com a mão, arrependida, não vá a sirigaita contar à madrasta.

- É um menino óptimo – elogia Leonora.

- Você é que é boa, fecha os olhos às bobagens dele – desaparece no quarto do oratório.

A sós, Leonora retoma os livros da autoria do poeta De Matos Barbosa, emprestados pelo autor: dois de versos, um de pensamentos filosóficos. Empréstimo feito debaixo de muitas recomendações. Tomasse cuidado pois ele possuía apenas aqueles únicos volumes e as edições estão há muito esgotadas. De uma delas o exemplar vale hoje uma verdadeira fortuna, e ainda assim quem possui não quer se desfazer. Tiragem limitada, fora de comércio, ilustrada com dez gravuras de Calasans Neto, a cores e a preto-e-branco, financiada por amigos do poeta, fora vendida a subscritores quando a embolia o ameaçou de morte ou, pior, de mudez, de cegueira, paralisia, cadeira de rodas. Com o produto da venda directa, obtivera dinheiro para pagar quarto particular em hospital e as contas da farmácia. Médicos, tivera dos melhores, de graça; quem, em Salvador, não conhecia e estimava o poeta De Matos Barbosa e sua mansa loucura?

Ao entregar os envelhecidos tomos, folheando com Leonora a bela edição dos Poemas do Agreste, revendo as ilustrações, Barbozinha filosofara sobre a vida, os caprichos do destino. Aquele fora o último livro que conseguira publicar. Recuperado porém marcado pelo derrame, a voz presa, o passo tardo, aposentado da função pública, partira para o voluntário exílio na placidez da terra natal, distante das portas de livraria, dos animados cafés e das tertúlias, das colunas dos jornais, do sucesso e do renome. Enquanto isso, daquelas primeiras cabras e baleias, talhadas na madeira há onze anos, para ilustrar poemas sobre os
outeiros de Agreste e os cômoros de Mangue Seco, inesperadas baleias vindas do mar, em navegação no rio Real, cabras dom dengues e meneios de mulher, alteando-se sobre as rochas, disparara o jovem gravador Calasans Neto – o caboclo Calá, um porreta, assim o trata e define o vate Barbozinha – para rápida e gloriosa carreira, hoje nome nacional, com exposições inclusive no exterior, em Nova Orleans e em Londres, sim senhora, minha gentil amiga. Assim é a vida, uns subindo, outros descendo a rampa, constata ele sem amargura: tendo vivido numerosas existências, encarnado tantas e tantas vezes, esses altos e baixos não o apoquentam. Muito menos agora quando o fraterno Giovanni Guimarães, glorioso e popular cronista de A Tarde, o retira do ostracismo para lhe entregar o estandarte da luta contra a poluição.

Compusera, em duas noites de inspiração e raiva, cinco Poemas da Maldição para marcar com o ferrete candente da poesia a face podre dos vendilhões da morte. Viera com a ideia de os ler para Tieta, musa eterna e singular dos livros publicados, braço e coração a sustentá-lo quando o raio o atingiu e o vate encontrou-se soterrado sob a humilhação da versalhada em louvor à Brastânio, aquela abjeção por ele produzida devido ao engano em que lamentavelmente incorrera em companhia de Ascânio, ambos inocentes vítimas da perfídia. Aproveitou para agradecer à encantadora à encantadora síflide ter destruído, nas chamas purificadoras, a cópia do corpo de delito, apagando-se assim, para todo o sempre, a lembrança da infâmia; os originais ele os havia igualmente transformado em cinzas.

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