Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 153
EPISÓDIO Nº 153
DE ASCÂNIO TRINDADE ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA
No auge da discussão, falto de argumentos, imprensado contra a parede, Ascânio Trindade perde a cabeça, abandona a amabilidade habitual e, mandando para o inferno o respeito devido à situação social, patente e idade dos interlocutores, grita para quem queira ouvir, no Aerópago e na rua:
- Não é porque o Comandante tem uma casa em Mangue Seco e quer gozar sozinho as delícias da praia que Agreste vai fechar as portas ao progresso. Não será por causa de meia dúzia de privilegiados que recusaremos as indústrias que desejam se instalar na nossa terra. Agreste se redimirá, doa a quem doer.
Quase um discurso, sem falar na exaltação. Criatura de entusiasmo fácil mas de trato lhano e convivência agradável. Patriota às voltas com quiméricos projectos para reerguer o decadente burgo, abarrotando de cartas as sessões de turismo dos jornais da capital, Ascânio reunira até então a estima, o apoio e os aplausos dos seus conterrâneos.
O apoio e o aplauso dos importantes, pela cordialidade e deferência com que os acolhe quando têm algo a tratar na Prefeitura e pelo esforço desprendido em prol de Agreste. Secretário da Prefeitura há seis anos, Ascânio realizara milagres, entre os quais de colocar em dia o recebimento dos impostos municipais, pequenos, poucos e, ainda por cima, sistematicamente sonegados.
Enfrentando o compadrio dos prefeitos, o total desinteresse do tesoureiro Lindolfo Araújo, galante presença a enfeitar o próprio da Municipalidade, funcionário relapso e nulo, a relutância de comerciantes e fazendeiros mal acostumados, Ascânio conseguira por ordem nas magras finanças da Prefeitura, sem se atritar com ninguém – contado não se acredita.
A estima dos pobres, da cidade e do interior, pela atenção que dispensa a cada um dos numerosos e atrapalhados problemas trazidos ao chefe da comuna, em realidade em seu proposto, na esperança de solução ora simples, ora difícil, quando não impossível. Reivindicações, reclamos, queixas, desavenças, brigas de vizinhos, cercas movidas durante a noite modificando os limites e rumos de sítios e posses, animais invadindo terreno alheio, um mundo de mesquinhas questões próprias à vida de um município paupérrimo, na maioria pessoais, sem nada a ver com a administração pública. Nem por isso Ascânio deixava de escutá-las e, frequentemente de resolvê-las. Faz as vezes de prefeito, conselheiro e juiz, solucionando litígios, reconciliando desafectos, esclarecendo dúvidas, conduzindo ao casamento relutantes sedutores responsáveis pelo ventre inchado de incutas ou apressadas tabaroas, chega a receitar remédios para soltura dos intestinos, prisão de ventre e barriga d’água. Ouve com atenção infindáveis lengalengas de roceiros a propósito das manhas de um maldito jegue ou das desventuras de um septuagenário abandonado pela mulher e pelos filhos, sozinho a lavrar árido e ingrato pedaço de terra. Sendo, quando preciso, veterinário e agrónomo.
Para os assuntos de atendimento impossível, encontra uma palavra de ânimo, de consolo. Se bem o cargo de secretário da Prefeitura lhe especifique determinado número de obrigações, o facto de Ascânio funcionar como representante ou substituto permanente do prefeito não lhe deixa tempo livre. Sobretudo aos sábados, quando infindável romaria demanda a sede do executivo municipal, durante e depois da feira. Ele atende a todos sem excepção.
Assim age sem nenhum interesse pessoal, gratuitamente, sem nada pedir em troca. Não pede porém recebe. Recebe consideração e víveres. Tratam-no de doutor, não porque houvesse cursado três anos na Universidade, mas por considerarem-no como tal, sapiente sem particularizarem o título concedido, doutor disso ou daquilo. Doutor, simplesmente. Trazem-lhe pequenos presentes, mesmo quando não necessitam consultá-lo.
Vale a pena vê-lo ao fim da tarde dos sábados, a caminho de casa onde, pitando o cachimbo de barro, a velha Rafa o espera. Leva matolotagem com que se alimentar durante a semana. Dádivas trazidas pelos roceiros e sitiantes, farto e variado mafuá: pernis de porco e de cabrito, gordos capões – cevei bem cevado para o senhor mandar fazer uma canjinha e ganhar sustância, explica a velha vendedora de puba e mandioca – olorosas jacas, cachos de bananas amarelecendo, raízes de inhame e aipin – aipin cacau, doutor, mole de desmanchar na boca, garante o caboclo risonho e desdentado – a fina farinha de mandioca, beijús molhados em leite de coco, quiabos, maxixes, chuchus e jilós, tudo escolhido para o moço paciente e bondoso. Fartura de mantimentos, servindo a quatro casas pois Ascânio divide carnes, farinha, espigas de milho, frutos, raízes e legumes com o capenga Leôncio e o sonhador Lindolfo – um dia se armará de coragem e embarcará na marinete de Jairo para enfrentar em Salvador os microfones de uma estação de rádio ou as câmeras de televisão – o qual, por sua vez, reparte a quota que lhe coube com a família do amigo Chico Sobrinho, em cujo lar acolhedor janta aos sábados e almoça aos Domingos.
No auge da discussão, falto de argumentos, imprensado contra a parede, Ascânio Trindade perde a cabeça, abandona a amabilidade habitual e, mandando para o inferno o respeito devido à situação social, patente e idade dos interlocutores, grita para quem queira ouvir, no Aerópago e na rua:
- Não é porque o Comandante tem uma casa em Mangue Seco e quer gozar sozinho as delícias da praia que Agreste vai fechar as portas ao progresso. Não será por causa de meia dúzia de privilegiados que recusaremos as indústrias que desejam se instalar na nossa terra. Agreste se redimirá, doa a quem doer.
Quase um discurso, sem falar na exaltação. Criatura de entusiasmo fácil mas de trato lhano e convivência agradável. Patriota às voltas com quiméricos projectos para reerguer o decadente burgo, abarrotando de cartas as sessões de turismo dos jornais da capital, Ascânio reunira até então a estima, o apoio e os aplausos dos seus conterrâneos.
O apoio e o aplauso dos importantes, pela cordialidade e deferência com que os acolhe quando têm algo a tratar na Prefeitura e pelo esforço desprendido em prol de Agreste. Secretário da Prefeitura há seis anos, Ascânio realizara milagres, entre os quais de colocar em dia o recebimento dos impostos municipais, pequenos, poucos e, ainda por cima, sistematicamente sonegados.
Enfrentando o compadrio dos prefeitos, o total desinteresse do tesoureiro Lindolfo Araújo, galante presença a enfeitar o próprio da Municipalidade, funcionário relapso e nulo, a relutância de comerciantes e fazendeiros mal acostumados, Ascânio conseguira por ordem nas magras finanças da Prefeitura, sem se atritar com ninguém – contado não se acredita.
A estima dos pobres, da cidade e do interior, pela atenção que dispensa a cada um dos numerosos e atrapalhados problemas trazidos ao chefe da comuna, em realidade em seu proposto, na esperança de solução ora simples, ora difícil, quando não impossível. Reivindicações, reclamos, queixas, desavenças, brigas de vizinhos, cercas movidas durante a noite modificando os limites e rumos de sítios e posses, animais invadindo terreno alheio, um mundo de mesquinhas questões próprias à vida de um município paupérrimo, na maioria pessoais, sem nada a ver com a administração pública. Nem por isso Ascânio deixava de escutá-las e, frequentemente de resolvê-las. Faz as vezes de prefeito, conselheiro e juiz, solucionando litígios, reconciliando desafectos, esclarecendo dúvidas, conduzindo ao casamento relutantes sedutores responsáveis pelo ventre inchado de incutas ou apressadas tabaroas, chega a receitar remédios para soltura dos intestinos, prisão de ventre e barriga d’água. Ouve com atenção infindáveis lengalengas de roceiros a propósito das manhas de um maldito jegue ou das desventuras de um septuagenário abandonado pela mulher e pelos filhos, sozinho a lavrar árido e ingrato pedaço de terra. Sendo, quando preciso, veterinário e agrónomo.
Para os assuntos de atendimento impossível, encontra uma palavra de ânimo, de consolo. Se bem o cargo de secretário da Prefeitura lhe especifique determinado número de obrigações, o facto de Ascânio funcionar como representante ou substituto permanente do prefeito não lhe deixa tempo livre. Sobretudo aos sábados, quando infindável romaria demanda a sede do executivo municipal, durante e depois da feira. Ele atende a todos sem excepção.
Assim age sem nenhum interesse pessoal, gratuitamente, sem nada pedir em troca. Não pede porém recebe. Recebe consideração e víveres. Tratam-no de doutor, não porque houvesse cursado três anos na Universidade, mas por considerarem-no como tal, sapiente sem particularizarem o título concedido, doutor disso ou daquilo. Doutor, simplesmente. Trazem-lhe pequenos presentes, mesmo quando não necessitam consultá-lo.
Vale a pena vê-lo ao fim da tarde dos sábados, a caminho de casa onde, pitando o cachimbo de barro, a velha Rafa o espera. Leva matolotagem com que se alimentar durante a semana. Dádivas trazidas pelos roceiros e sitiantes, farto e variado mafuá: pernis de porco e de cabrito, gordos capões – cevei bem cevado para o senhor mandar fazer uma canjinha e ganhar sustância, explica a velha vendedora de puba e mandioca – olorosas jacas, cachos de bananas amarelecendo, raízes de inhame e aipin – aipin cacau, doutor, mole de desmanchar na boca, garante o caboclo risonho e desdentado – a fina farinha de mandioca, beijús molhados em leite de coco, quiabos, maxixes, chuchus e jilós, tudo escolhido para o moço paciente e bondoso. Fartura de mantimentos, servindo a quatro casas pois Ascânio divide carnes, farinha, espigas de milho, frutos, raízes e legumes com o capenga Leôncio e o sonhador Lindolfo – um dia se armará de coragem e embarcará na marinete de Jairo para enfrentar em Salvador os microfones de uma estação de rádio ou as câmeras de televisão – o qual, por sua vez, reparte a quota que lhe coube com a família do amigo Chico Sobrinho, em cujo lar acolhedor janta aos sábados e almoça aos Domingos.
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