Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 156
EPISÓDIO Nº 156
ONDE O COMANDANTE DÁRIO DE QUELUZ RECRUTA VOLUNTÁRIOS
Ao leme da canoa a motor, comandante Dário espera que Tieta conclua a leitura da crónica de Giovanni Guimarães. Ele e dona Laura passarão em Mangue Seco o Ano-Novo e a festa dos Reis. Tieta e Ricardo aproveitam a condução e a companhia: vão dar o empurrão final nas obras do curral do Bode Inácio, certamente atrasadas devido ao Natal, qualquer pretexto serve aos praieiros para não trabalhar. Tieta deseja inaugurar a biboca – assim a designa – antes de volta para São Paulo, marcada para imediatamente após a instalação da luz da Hidrelétrica; não pensara prolongar por tanto tempo a estada. Viera por um mês, terminará passando dois; para quem tem negócios a cuidar um absurdo. Para o Curral, mandou fazer em Agreste uma cama larga, colchão de lã de barriguda: nela se despedirá de Ricardo quando chegar a hora de partir. Por intermédio de Astério encomendou cadeiras e mesas dobradiças, camas de campanha; comprou redes na feira. Para os hóspedes: para o Velho e mãe Tonha, as irmãs, os sobrinhos, os amigos que utilizarão o Curral em sua ausência.
A primeira reacção de Tieta, após a leitura, deixou o Comandante alarmado. Devolvendo-lhe as páginas dactilografadas, ela comentou:
- Há um dinheirão a ganhar, Comandante, nessa história.
- Dinheirão a ganhar?
- Não foi o senhor mesmo quem me disse que essas terras do coqueiral não têm dono, são devolutas?
- Não é bem assim. Donos, elas têm, mas quais são ninguém sabe direito. Modesto Pires comprou uma parte, a que era do pessoal do povoado. Foi ele que me disse não ter comprado mais devido à confusão, o coqueiral tem não sei quantos donos, o que é o mesmo que não ter nenhum.
- Pois então: a gente compra esses terrenos para vender ao pessoal da Companhia. Compra por um vende por dez, por dez ou vinte. Filipe era um craque nessas operações.
- Deus me livre Tieta. Não quero ganhar dinheiro à custa da desgraça da minha terra.
- Comandante, se a gente não pode impedir, se não tem jeito a dar, pelo menos ganha um dinheirinho. Quando Ascânio começou com essa história de turismo, eu pensei em comprar terrenos por aqui.
- Primeiro eu não tenho com que comprar um gato morto; segundo, vai ser a maior dificuldade localizar os donos; terceiro – fez uma pausa antes de enunciar – não vou cruzar os braços, Tieta, vou partir para a briga. Sou o homem mais pacato do mundo, mas essa gente não vai poluir Agreste sem meu protesto. Isso não.
A canoa pesada, impelida pelo motor de pouca força, desce o rio sem pressa. A voz apaixonada do Comandante conquista a atenção de Ricardo. A princípio o seminarista seguira a conversa de ouvido distraído, o pensamento vogando na correnteza. Esses dias em Agreste, as festas de Natal, deixaram lembranças e marcas ténues mas persistentes. Ficaram-lhe na cabeça, fazem-se presentes e ele encontra sabor em recordá-las. Pela primeira vez, dera-se conta do interesse com que, na rua e na igreja, certas mulheres o fitavam. As moças, debruçadas nas janelas, seguiam-nos com os olhos, quando passava de batina, indo ajudar padre Mariano na missa ou quando atravessava a praça, shorte e camiseta, a caminho do rio. Cinira mordia os lábios ao vê-lo, suspirava; dona Edna, essa nem se fala; comia-o com os olhos mesmo na frente do marido. Na festa dos brindes de Natal, Ricardo sentia o contacto das ancas redondas de dona Edna, abalroando-o na confusão. A lembrança mais pertinaz e grata, porém é de Carol, semi-escondida atrás da janela, segurando a cortina e sorrindo para ele, os lábios abertos carnudos, os olhos húmidos. Ao percebê-lo vindo no passeio, Carol retirara-se da janela para melhor poder espiá-lo e para lhe sorrir – coisas defesas ao seu estado de amásia de ricalhaço. Mais moça e mais escura do que a tia, possuía o mesmo busto farto, idênticos quadris, poderosos e maneiros, igual exuberância de carnação, quem sabe a mesma alegria?
Em Agreste, Ricardo não se demora a pensar naqueles meneios e sorrisos, lábios mordiscando-se, ancas em navegação subtil. Desfaziam-se na fumaça do incenso. Retornam na canoa, e no espelho do rio ele enxerga faces e gestos, não lhe desagradam. À noite terá Tieta nos braços, sobre as dunas, como da primeira vez.
Na presença do Comandante e de dona Laura eram tia e sobrinho comportados. Ela dormia na cama de solteiro, ele na rede. Nas areias, no alto dos cômoros, porém, sumia o parentesco, o vento levava os ais de amor para o outro lado do oceano. Há pouquíssimos dias começara tudo aquilo, parecia uma enormidade de tempo, pois Ricardo, nesse interim, fizera-se outro. Quantos dias? Quantos anos? Curioso que jamais se houvesse sentido tão próximo de Deus, tão convicto da vocação sacerdotal. Por quê? Ao dizê-lo a Frei Timóteo, o franciscano não percebera a contradição no caso, ao contrário.
- Você pôs à prova sua vocação. Agora está em paz consigo mesmo.
Ricardo emerge desses pensamentos para escutar a veemente declaração do Comandante, a voz em crescendo:
- Vou brigar e quando eu brigo é de verdade.
Ao leme da canoa a motor, comandante Dário espera que Tieta conclua a leitura da crónica de Giovanni Guimarães. Ele e dona Laura passarão em Mangue Seco o Ano-Novo e a festa dos Reis. Tieta e Ricardo aproveitam a condução e a companhia: vão dar o empurrão final nas obras do curral do Bode Inácio, certamente atrasadas devido ao Natal, qualquer pretexto serve aos praieiros para não trabalhar. Tieta deseja inaugurar a biboca – assim a designa – antes de volta para São Paulo, marcada para imediatamente após a instalação da luz da Hidrelétrica; não pensara prolongar por tanto tempo a estada. Viera por um mês, terminará passando dois; para quem tem negócios a cuidar um absurdo. Para o Curral, mandou fazer em Agreste uma cama larga, colchão de lã de barriguda: nela se despedirá de Ricardo quando chegar a hora de partir. Por intermédio de Astério encomendou cadeiras e mesas dobradiças, camas de campanha; comprou redes na feira. Para os hóspedes: para o Velho e mãe Tonha, as irmãs, os sobrinhos, os amigos que utilizarão o Curral em sua ausência.
A primeira reacção de Tieta, após a leitura, deixou o Comandante alarmado. Devolvendo-lhe as páginas dactilografadas, ela comentou:
- Há um dinheirão a ganhar, Comandante, nessa história.
- Dinheirão a ganhar?
- Não foi o senhor mesmo quem me disse que essas terras do coqueiral não têm dono, são devolutas?
- Não é bem assim. Donos, elas têm, mas quais são ninguém sabe direito. Modesto Pires comprou uma parte, a que era do pessoal do povoado. Foi ele que me disse não ter comprado mais devido à confusão, o coqueiral tem não sei quantos donos, o que é o mesmo que não ter nenhum.
- Pois então: a gente compra esses terrenos para vender ao pessoal da Companhia. Compra por um vende por dez, por dez ou vinte. Filipe era um craque nessas operações.
- Deus me livre Tieta. Não quero ganhar dinheiro à custa da desgraça da minha terra.
- Comandante, se a gente não pode impedir, se não tem jeito a dar, pelo menos ganha um dinheirinho. Quando Ascânio começou com essa história de turismo, eu pensei em comprar terrenos por aqui.
- Primeiro eu não tenho com que comprar um gato morto; segundo, vai ser a maior dificuldade localizar os donos; terceiro – fez uma pausa antes de enunciar – não vou cruzar os braços, Tieta, vou partir para a briga. Sou o homem mais pacato do mundo, mas essa gente não vai poluir Agreste sem meu protesto. Isso não.
A canoa pesada, impelida pelo motor de pouca força, desce o rio sem pressa. A voz apaixonada do Comandante conquista a atenção de Ricardo. A princípio o seminarista seguira a conversa de ouvido distraído, o pensamento vogando na correnteza. Esses dias em Agreste, as festas de Natal, deixaram lembranças e marcas ténues mas persistentes. Ficaram-lhe na cabeça, fazem-se presentes e ele encontra sabor em recordá-las. Pela primeira vez, dera-se conta do interesse com que, na rua e na igreja, certas mulheres o fitavam. As moças, debruçadas nas janelas, seguiam-nos com os olhos, quando passava de batina, indo ajudar padre Mariano na missa ou quando atravessava a praça, shorte e camiseta, a caminho do rio. Cinira mordia os lábios ao vê-lo, suspirava; dona Edna, essa nem se fala; comia-o com os olhos mesmo na frente do marido. Na festa dos brindes de Natal, Ricardo sentia o contacto das ancas redondas de dona Edna, abalroando-o na confusão. A lembrança mais pertinaz e grata, porém é de Carol, semi-escondida atrás da janela, segurando a cortina e sorrindo para ele, os lábios abertos carnudos, os olhos húmidos. Ao percebê-lo vindo no passeio, Carol retirara-se da janela para melhor poder espiá-lo e para lhe sorrir – coisas defesas ao seu estado de amásia de ricalhaço. Mais moça e mais escura do que a tia, possuía o mesmo busto farto, idênticos quadris, poderosos e maneiros, igual exuberância de carnação, quem sabe a mesma alegria?
Em Agreste, Ricardo não se demora a pensar naqueles meneios e sorrisos, lábios mordiscando-se, ancas em navegação subtil. Desfaziam-se na fumaça do incenso. Retornam na canoa, e no espelho do rio ele enxerga faces e gestos, não lhe desagradam. À noite terá Tieta nos braços, sobre as dunas, como da primeira vez.
Na presença do Comandante e de dona Laura eram tia e sobrinho comportados. Ela dormia na cama de solteiro, ele na rede. Nas areias, no alto dos cômoros, porém, sumia o parentesco, o vento levava os ais de amor para o outro lado do oceano. Há pouquíssimos dias começara tudo aquilo, parecia uma enormidade de tempo, pois Ricardo, nesse interim, fizera-se outro. Quantos dias? Quantos anos? Curioso que jamais se houvesse sentido tão próximo de Deus, tão convicto da vocação sacerdotal. Por quê? Ao dizê-lo a Frei Timóteo, o franciscano não percebera a contradição no caso, ao contrário.
- Você pôs à prova sua vocação. Agora está em paz consigo mesmo.
Ricardo emerge desses pensamentos para escutar a veemente declaração do Comandante, a voz em crescendo:
- Vou brigar e quando eu brigo é de verdade.
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