sexta-feira, junho 05, 2009


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 154






É necessário levar em conta, para explicar o destempero de Ascânio, que, a partir da tarde anterior, quando a notícia da crónica de Giovani explodiu na cidade, sua vida não tem sido fácil. Encheram-lhe o saco, essa a expressão justa.

Jamais a popularidade de A Tarde atingira índices tão altos na região. Todos criam tomar conhecimento da crónica, onde encontrar exemplares do jornal? Habitualmente, o único à disposição do público é o de propriedade de seu Manuel, colocado sobre o balcão do bar, folheado pelos fregueses, lido por Aminthas e Fidélio. Nessa tarde, disputado quase a tapa, andou de mão em mão antes de sumir misteriosamente. A conselho de Aminthas, seu Manuel, baseado nas leis da oferta e da procura, tentara cobrar aluguer pelo empréstimo da gazeta, provocando revolta geral. O mesmo Aminthas propôs, em revide, a imediata socialização de todo o estoque de bebidas do bar, castigo para a ganância do mondrongo. A atmosfera jocosa e inquieta participava do pânico e da galhofa.

Quantas vezes, naquele fim de tarde e princípio de noite, Ascânio tivera de repetir a mesma explicação: parecia-lhe prematuro qualquer julgamento. Prematuro e injusto pois somente conheciam – quando conheciam - os argumentos do jornalista adversário da Brastânio, fazendo-se necessário, antes de expressar opinião, de tomar partido, conhecer também as razões dos directores e técnicos da Empresa.

À noitinha, quando se dirigia para o encontro sagrado com Leonora, na casa de Perpétua – costumavam andar em volta da praça, de mãos dadas – caiu-lhe em cima o poeta De Matos Barbosa, exaltado, empunhando um exemplar de A Tarde, cedido pelo árabe Chalita, um dos cinco privilegiados assinantes. Durante horas, à tarde, Ascânio fugira dele, sabendo-o em lastimável estado de ânimo.

A princípio, o vate se considera desmoralizado para sempre, coberto de opróbio devido ao poema perpetrado em louvor da monstruosa indústria denunciada à nação pelo seu querido e grande amigo Giovani Guimarães, excelso cronista, em carta aberta dirigida a ele. De Matos Barbosa, poeta e filósofo, através das colunas ilustres de A Tarde. Honra imensa apenas superada pela desonra ainda maior resultante dos repudiados alexandrinos. Por sorte, a criança enlouquecida com os brindes – brindes vagabundos, diga-se de passagem, abaixo da crítica, umas merdolências, qualificava o bardo, um tanto quanto tardiamente – haviam impedido a audição dos renegados versos, ouvidos e aplaudidos no entanto pelos amigos presentes à tertúlia em casa de Perpétua.

Correra para junto de Tieta ao ver-se envolto em vergonha e ela a rir e a pilheriar, levantara-lhe o ânimo, reerguendo-o das cinzas, levando-o a superar o abatimento e a partir para outra. Refeito vinha informar a Ascânio, a quem não culpa pelo terrível quiproquó, na certa tão inocente das criminosas intenções da Brastânio quanto ele próprio que, atendendo ao grito de alerta de Giovani Guimarães, convertera a lira em arma de combate e estava produzindo a toque de caixa uma série de poemas satíricos e coléricos, à maneira de Gregório de Matos, os Poemas da Maldição; com os quais pensa concorrer de maneira decisiva para impedir a concretização dos maléficos planos da excomungada Brastânio, arrancando a máscara, expondo a hipocrisia e a vileza dos criminosos directores. Pelo próximo correio, enviará a Giovanni, para publicação em A Tarde, os primeiros poemas. Desfralda a bandeira da guerra. Quanto à execrável composição anterior já não existe: Barbozinha destruíra os originais e desejava pedir a Leonora o favor de queimar em fogo purificador a cópia feita logo após a leitura.

Cansado, em atraso para o seu encontro com Leonora, Ascânio não tentou demovê-lo da denúncia poética, seria perder tempo e latim. Prometeu-lhe a destruição da cópia mas não o enganou; reservava a sua opinião sobre o assunto para quando possuísse maior soma de informações. Mais informações, para quê? Inúteis, fossem quais fossem, considerou o poeta, diante dos argumentos do seu excelso amigo Giovanni Guimarães, irrespondíveis.

Nesse estado de ânimo, depois de uma noite de mal dormir, com pesadelos onde admirou arranha-céus magníficos erguidos nas dunas de Mangue Seco e reconheceu cardumes de peixes mortos, sem possuir ainda argumentos com que enfrentar e refutar as afirmações do cronista, Ascânio ouviu a leitura do malfadado artigo na íntegra, como se não o houvesse lido e relido na véspera. Ainda mais funéreo na voz encatarroada de dona Carmosina, entrecortada de tosse e de sarcásticos e corrosivos apartes; dela e do Comandante. Ao terminar, dona Carmosina lhe oferece uma cópia dactilografada, fizera três: uma para ele, outra para o Comandante, a terceira para qualquer emergência.

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