domingo, julho 12, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 180


DOS RITOS DA MORTE E DAS AFLIÇÕES DA VIDA



No fim da tarde daquele trinta e um de Dezembro, repousada, Tieta vestiu-se discretamente e, depois de conversar em casa com Osnar e no curtume com Modesto Pires, tomou de dona Carmosina na agência dos Correios e Telégrafos e com ela dirigiu-se à casa de Elisa. Do balcão da loja onde demora na esperança de algum freguês retardatário para a derradeira compra do ano, Astério as vê passar, advinha-lhes o destino: vão fazer companhia a Elisa, consolar mãe Tonha. Lança um olhar na direcção do Bar dos Açores, hoje não tem direito à diversão costumeira; ainda bem que as partidas decisivas do campeonato de bilhar que designará o Taco de Ouro de 1965 foram adiadas devido à morte do velho Zé Esteves, sogro de um dos quatro semifinalistas: Astério Simas, José da Mata Seixas, Ascânio Trindade e Fidélio Dórea A. de Arroubas Filho. Logo no último dia do ano; haviam previsto uma bramota comemorativa para festejar o campeão. Há três anos Astério detém o ceptro, arrebatado a Ascânio Trindade cujas obrigações na Prefeitura o trazem afastado da mesa do bilhar, aparecendo apenas uma tarde ou outra. Ultimamente, salva-se uma alma do purgatório quando ele impunha taco e giz: ao cargo somou-se o namoro para deixá-lo sem tempo para o esporte. Astério suspira: adiada a disputa, suspensa a festa, o demónio do Velho até depois da morte o persegue e chateia.

Elisa atira-se nos braços da irmã, em renovada tribulação. A morte deve ser honrada, o sentimento dos parentes do defunto, proclamado em ais e soluços, lágrimas e lamentos, sinais de dor visíveis e constatáveis. Assim se demonstra a consideração dispensada ao finado, em provas públicas de afecto e saudade. Além e acima da mágoa e da dor, situam-se os ritos da morte, obrigatórios, dos trajes negros ao clamor das carpideiras.

Num canto da sala, silenciosa, apagada, de repente velha sem idade, mãe Tonha, os olhos vermelhos. Apesar de todo o despotismo, Zé Esteves fora tudo o que possuíra. Ele a tirara da casa dos pais, roceiros pobres e, sendo homem de posses, um senhor da cidade, com terras e cabras, quase um coronel, a desposara após havê-la derrubado nos matos. Casara no padre e no juiz quando podia tê-la abandonado de buxo cheio, ao deus dará; assim costuma acontecer em Agreste com frequência e impunidade.

Junto ao marido Tonha viveu, silenciosa e obediente, quase trinta anos. Tomando esporros, sofrendo maus tratos, ouvindo xingos, mas tendo calor de companheiro a acalentá-la, rude mão de amparo, e vez por outra um beijo, uma carícia, o fogo do velho bode persistindo no vício até à véspera da morte. Zé Esteves gabava-se de feitos de cama e se alguém punha em dúvida tamanho vigor em sua idade, apelava para o testemunho de Tonha:

- Estou mentindo, mulher? Diga pra ele.

Piscava o olho, ria o grosso riso de fumo-de-corda, cuspindo negra cusparada. Tonha baixava a vista, um sorriso fugaz, entre envergohado e afirmativo.

A chegada de Tieta e dona Carmosina acciona o aparelho da aflição, mergulha a sala em trevas. Ao vê-las, Tonha levanta-se, rompe em soluços, Elisa a acompanha, passa dos braços da irmã para os da amiga e protectora. Tonha repete em monótono cantochão:

- Que vai ser de mim, agora?

Tieta prende a madrasta contra o peito, em silêncio, antes de reacomodá-la na cadeira e sentar-se a seu lado, junto à mesa:

- Fique descansada, mãe Tonha, nada há de lhe faltar. Vosmicê vai morar com Elisa e Astério e todo o mês eu mando um dinheirinho para suas despesas. Tonha tenta lhe beijar a mão, igual a Zé Esteves na hora de embarcar no bote de Pirica, em caminho da morte. Houvesse Tieta nascido de seu ventre e não seria filha melhor, mais dedicada. Pouco tempo Tonha a tivera em sua companhia, dois anos se muito; eram então da mesma idade, duas adolescentes.

Quando o Velho me botou para fora de casa – lembra Tieta – na hora em que eu estava arrumando minha trouxa, vosmicê me deu um dinheiro, pensa que me esqueci? Se não fosse por vosmicê e por mãe Milú eu saía daqui para enfrentar o mundo sem um vintém furado.

Tinham as duas a mesma idade naquela madrugada da partida de Tieta na boleia do caminhão. Tieta a tratava de vosmicê e de mãe, exigência do Velho ranzinza. Agora o faz de moto próprio, já não são da mesma idade; moça, louça e vistosa, a alegre viúva do comendador paulista; velha e definhada, magra e sofrida, a viúva do arruinado criador de cabras, encolhida na desolação do vestido barato e negro, de chita

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