TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 230
EPISÓDIO Nº 230
Deus o ilumina a ponto de ter sido um argumento de Ricardo, sobre o aterro necessário à construção da fábrica e das casas de operários, provocando o fim do mangue e dos caranguejos, o único a causar um certo abalo na indiferença geral. A notícia da provável extinção dos caranguejos, base da alimentação dos habitantes – as mulheres iam pescá-los no coqueiral enquanto os homens remendavam as velas dos barcos e pintavam os seus cachimbos de barro – suscitou interesse e debate. De curta duração, porém, o velho Jonas, cuja palavra todos respeitam, observou:
- Como é que vão acabar com o mangue e os caranguejos? Não tem dinheiro no mundo que chegue para uma despesona dessa.
Balançando a cabeça em sinal de aquiescência, ouviram com atenção as explicações do Comandante que renovou a gravidade da ameaça com palavras cruas: para ganhar dinheiro fácil, uns tipos sem entranhas queriam instalar no coqueiral uma fábrica de veneno, um veneno pior que a estricnina, mata tudo, a começar pelos caranguejos.
- Caranguejo não morre fácil, não seu Comandante. Nunca ouvi falar que veneno matasse caranguejo. Quão o quê!
O que os decidiu a apoiar Ricardo e o engenheiro no projecto de correr dali o pessoal da Brastânio, quando novamente aparecesse, foi a conversa mantida por Jonas, Isaías e Daniel, os três chefes incontestados da pequena comunidade, com Jeremias, na escuna, fora da barra, em madrugada tempestuosa. O Compadre – Jeremias era compadre de todos os chefes de família, em cada casa tinha um afilhado – lhes comunicou pesaroso, que aquela secular actividade da qual viveram seus antepassados e agora viviam eles, os compadres e os afilhados, suas mulheres, os irmãos e irmãs, as tias e as avós e mais um bocado de gente espalhada rio afora e nas cidades próximas, incluindo Elieser, estava ameaçada de findar-se ou melhor dito, deveriam as escunas e os navios procurarem outro ponto onde descarregarem a mercadoria. Se a fábrica se instalar em Mangue Seco – e parece que termina por fazê-lo, pois nos outros lugares o povo se levanta e não permite enquanto aqui ninguém faz nada para impedir – isso significa o fim do contrabando, pois desaparecerão as condições indispensáveis de segurança. Perderá Mangue Seco aquela situação ideal de isolamento, de praia desconhecida, um fim de mundo, própria para o desembarque e escoamento da moamba. Instalada a fábrica, o tráfico tornar-se-á impraticável.
Essa ameaça, sim, os decidiu. De quebra, perguntam ao Compadre se é verdade que tal indústria produz veneno capaz de matar caranguejos. Jeremias tem uma profunda cicatriz no rosto e fala sem tirar o cachimbo da boca.
Homem melhor não pode haver, igual só mesmo o Comandante, mas são diferentes os laços que ligam a gente de Mangue Seco a um e a outro. O Comandante é bom amigo; o Compadre é um deles. Juntos arriscam a vida e a liberdade.
- Se mata caranguejo? Não vai sobrar nem um para remédio. O titânio empesteia tudo, mata até cágado que é bicho teimoso demais para morrer.
Jonas, o mais velho dos três assegura:
- Faça caso não, Compadre, a gente botou polícia para correr, quanto mais esses come-merda.
Isaías, o do meio, concorda:
- O engenheiro e o padrezinho já tinham dito que a gente devia dar uma lição neles. Vamos dar. Fique descansado, não mude o rumo, lugar como esse o Compadre não vai encontrar.
Daniel, o mais moço, recorda:
- Não esqueça o baptizado do menino, Compadre vai ser pro mês. Nunca pensei que matasse os caranguejos. O Comandante é um homem sério, assim mesmo duvidei. Tenha medo não, Compadre. Esse lugar, abaixo de Deus, só tem um dono, que é a gente. Essa areia e esse pedaço de água pertence a nós, não é de mais ninguém. O resto, quem quiser pode usar e abusar, em Mangue seco só o planta pé quem não bulir com a gente.
Cabe a Jonas a última palavra. Ergue o cotoco de braço:
- Vá com Deus, Compadre, e volte que nós damos fiança.
- Pois até o mês, meus compadres, vou sossegado. Abraços pras comadres e a bênção para os afilhados.
Noite ruim, o vento desatado, o mar raivoso, eles também: matar os caranguejos onde já se viu? A escuna desaparece na escuridão, os barcos penetram em meio às vagas e aos tubarões. Por ali só eles passam, antes passaram os pais e os avós na mesma tarefa proibida. Na praia, silenciosos, os homens desembarcaram as mercadorias, guardaram-na bem guardada, à espera de Elieser e dos outros camaradas.
A equipe técnica da Brastânio chegou a Mangue Seco depois de uma travessia demorada, desagradável, em mar agitado e perigoso. Na foz do rio Real, a ressaca cresce em vagalhões, o vento faz redemoinhos na areia, transforma a geografia da praia. Tempo tão péssimo, os pescadores do arraial do Saco não saíram para a pesca naquele dia. Na entrada da barra, houve um começo de pânico, sobretudo entre as mulheres.
- Como é que vão acabar com o mangue e os caranguejos? Não tem dinheiro no mundo que chegue para uma despesona dessa.
Balançando a cabeça em sinal de aquiescência, ouviram com atenção as explicações do Comandante que renovou a gravidade da ameaça com palavras cruas: para ganhar dinheiro fácil, uns tipos sem entranhas queriam instalar no coqueiral uma fábrica de veneno, um veneno pior que a estricnina, mata tudo, a começar pelos caranguejos.
- Caranguejo não morre fácil, não seu Comandante. Nunca ouvi falar que veneno matasse caranguejo. Quão o quê!
O que os decidiu a apoiar Ricardo e o engenheiro no projecto de correr dali o pessoal da Brastânio, quando novamente aparecesse, foi a conversa mantida por Jonas, Isaías e Daniel, os três chefes incontestados da pequena comunidade, com Jeremias, na escuna, fora da barra, em madrugada tempestuosa. O Compadre – Jeremias era compadre de todos os chefes de família, em cada casa tinha um afilhado – lhes comunicou pesaroso, que aquela secular actividade da qual viveram seus antepassados e agora viviam eles, os compadres e os afilhados, suas mulheres, os irmãos e irmãs, as tias e as avós e mais um bocado de gente espalhada rio afora e nas cidades próximas, incluindo Elieser, estava ameaçada de findar-se ou melhor dito, deveriam as escunas e os navios procurarem outro ponto onde descarregarem a mercadoria. Se a fábrica se instalar em Mangue Seco – e parece que termina por fazê-lo, pois nos outros lugares o povo se levanta e não permite enquanto aqui ninguém faz nada para impedir – isso significa o fim do contrabando, pois desaparecerão as condições indispensáveis de segurança. Perderá Mangue Seco aquela situação ideal de isolamento, de praia desconhecida, um fim de mundo, própria para o desembarque e escoamento da moamba. Instalada a fábrica, o tráfico tornar-se-á impraticável.
Essa ameaça, sim, os decidiu. De quebra, perguntam ao Compadre se é verdade que tal indústria produz veneno capaz de matar caranguejos. Jeremias tem uma profunda cicatriz no rosto e fala sem tirar o cachimbo da boca.
Homem melhor não pode haver, igual só mesmo o Comandante, mas são diferentes os laços que ligam a gente de Mangue Seco a um e a outro. O Comandante é bom amigo; o Compadre é um deles. Juntos arriscam a vida e a liberdade.
- Se mata caranguejo? Não vai sobrar nem um para remédio. O titânio empesteia tudo, mata até cágado que é bicho teimoso demais para morrer.
Jonas, o mais velho dos três assegura:
- Faça caso não, Compadre, a gente botou polícia para correr, quanto mais esses come-merda.
Isaías, o do meio, concorda:
- O engenheiro e o padrezinho já tinham dito que a gente devia dar uma lição neles. Vamos dar. Fique descansado, não mude o rumo, lugar como esse o Compadre não vai encontrar.
Daniel, o mais moço, recorda:
- Não esqueça o baptizado do menino, Compadre vai ser pro mês. Nunca pensei que matasse os caranguejos. O Comandante é um homem sério, assim mesmo duvidei. Tenha medo não, Compadre. Esse lugar, abaixo de Deus, só tem um dono, que é a gente. Essa areia e esse pedaço de água pertence a nós, não é de mais ninguém. O resto, quem quiser pode usar e abusar, em Mangue seco só o planta pé quem não bulir com a gente.
Cabe a Jonas a última palavra. Ergue o cotoco de braço:
- Vá com Deus, Compadre, e volte que nós damos fiança.
- Pois até o mês, meus compadres, vou sossegado. Abraços pras comadres e a bênção para os afilhados.
Noite ruim, o vento desatado, o mar raivoso, eles também: matar os caranguejos onde já se viu? A escuna desaparece na escuridão, os barcos penetram em meio às vagas e aos tubarões. Por ali só eles passam, antes passaram os pais e os avós na mesma tarefa proibida. Na praia, silenciosos, os homens desembarcaram as mercadorias, guardaram-na bem guardada, à espera de Elieser e dos outros camaradas.
A equipe técnica da Brastânio chegou a Mangue Seco depois de uma travessia demorada, desagradável, em mar agitado e perigoso. Na foz do rio Real, a ressaca cresce em vagalhões, o vento faz redemoinhos na areia, transforma a geografia da praia. Tempo tão péssimo, os pescadores do arraial do Saco não saíram para a pesca naquele dia. Na entrada da barra, houve um começo de pânico, sobretudo entre as mulheres.
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