CONVERSA DE SURDOS
O padre e teólogo Carreira das Neves e José Saramago travaram na televisão uma conversa quase de surdos ou, no mínimo, um diálogo difícil.
Esta dificuldade traduziu-se numa impossibilidade de entendimento, espécie de caminho que não leva a lado nenhum e que sempre acontecerá quando um crente e um não crente se procuram explicar reciprocamente.
José Saramago fez acusações graves à Bíblia e a Deus, tendo mesmo reconhecido ter exagerado quando utilizou certas expressões, por exemplo: o tal “Manual de Maus Costumes”, mas desculpou-se com os seus direitos de autor.
O reconhecimento deste exagero parece-me ter sido feito mais por uma questão de amabilidade para com o interlocutor e as pessoas religiosas que o estavam a ouvir do que por não pensar exactamente o que disse.
Ele leu o que estava escrito no Antigo Testamento e a conclusão a que chegou foi de que aquilo não passava de um manual de maus costumes e por isso o disse e reafirmará todas as vezes que lhe vier a propósito e justificará apoiando-se em muitas passagens da Bíblia.
A grande questão que se levanta nestas apreciações tão graves sobre a Bíblia, é que este livro, para judeus e cristãos, é um texto sagrado porque eles acreditam no Deus daquela religião enquanto que, para José Saramago e para todos os ateus, é simplesmente um livro, não propriamente igual a qualquer outro, mas sem a componente do sagrado.
Por esta razão, a discussão que ambos travam, não é de carácter literário ou interpretativo, qualquer coisa de académico que acontece com todas os livros, mas antes algo que toca fundo na essência espiritual de cada pessoa que professa aquelas religiões e incomoda também os outros, os não crentes, porque, afinal, todos fomos criados neste “caldo” religioso e sabemos que a sociedade é constituída maioritariamente por pessoas religiosas ou que se consideram como tal, incluindo nela os nossos amigos e familiares.
As pessoas, não se sabe quem, que ao longo de mil anos foram escrevendo o que está escrito na Bíblia, (não vamos pensar que tenha sido Deus a fazê-lo directamente), tinham a noção de que o estavam a fazer para um livro sagrado e que essas palavras iriam ser lidas como se tivessem sido ditadas por Deus, muitas delas, mesmo, diálogos onde intervém o próprio Deus como personagem.
Isto significava que aquela mensagem escrita não iria apenas influenciar os leitores mas formar consciências, mentalidades, transmitir orientações com a força de ordens, criar unidade de um povo à volta de um Deus, essa entidade suprema, transcendente, que se escapa ao entendimento porque ultrapassava os homens em absoluto, no poder, deixando-lhes apenas a escapatória da obediência cega, sem discussão.
Terrível a responsabilidade desses homens que ao longo dos séculos foram escrevendo a Bíblia de tal forma que tiveram de a repartir com os teólogos, os que interpretam essa escrita.
Por aquilo que ouvimos ontem ao teólogo Carreira das Neves, o Antigo Testamento é, todo ele, escrito por metáforas e parábolas, de uma forma simbólica, o que significa uma solução de grande inteligência porque permite que os teólogos o actualizem e expliquem aos crentes de acordo com os tempos que se estão vivendo e com as orientações que em cada momento a Igreja ache mais conveniente.
Por esta razão, a Bíblia será cada vez mais um texto metafórico, para interpretar e não para ler porque o seu significado literal, com o avanço dos conhecimentos científicos e o triunfo da razão, será cada vez menos compreensivo.
Assim, a importância e o papel dos teólogos é cada vez mais importante para a Igreja porque ela pretende – é uma pretensão - complementar a fé dos seus seguidores com explicações plausíveis e racionais da mensagem do seu Deus.
Contra isto se insurge José Saramago para quem o livro não tem nada de sagrado e pergunta: “mas com que direito os senhores me vêm dizer o que está escrito na Bíblia?”
E aqui está a polémica que, ao fim e ao cabo, não é polémica nenhuma:
- O padre Carreira das Neves lê a Bíblia com os olhos de um crente, nem preciso acrescentar de padre e teólogo.
- José Saramago faz a mesma leitura com os olhos de um não crente mesmo que, como afirmou, se esforçasse para o ser.
O ponto de partida está na crença de um Deus que em seis dias, ou lá o tempo que fosse, fez o Universo, antes não fez nada e depois, daí para cá, nada voltou a fazer, versão da Bíblia que, para Saramago, não crente, é absurdo e inteligível.
Realmente, a razão e a fé são inconciliáveis. A razão é um instrumento de análise crítica e a fé um dogma ou um conjunto de dogmas que não se sujeitam a essa tal análise crítica e constitui “batotice” Carreira das Neves afirmar que, “se os crentes não conseguem provar que Deus existe, os ateus também não conseguem provar que ele não existe”.
Todos sabemos que o ónus da prova é de quem afirma. Não é legítimo pensar que recai sobre mim a obrigação de provar em tribunal que não sou criminoso.
Fiquemo-nos, portanto, pela questão da fé. No último texto em que me referi a este assunto afirmei que o processo de selecção natural que permitiu a sobrevivência da espécie humana “encarregou-se” de fazer chegar até nós os crentes.
Os que não acreditavam e não seguiam os conselhos dos progenitores foram ficando pelo caminho…e mesmo assim não foi fácil, momentos houve em que chegámos a números no limiar mínimo da sobrevivência da espécie.
Este “jeito” de acreditar ficou-nos gravado no cérebro, é verdade, mas não nos esqueçamos que se chegámos ao que somos hoje devemo-lo à capacidade de usar a nossa razão sem a qual também não teríamos sobrevivido.
Temos de conviver todos, crentes e não crentes, apelando cada vez mais à nossa inteligência, razão e senso comum… seja ele o lado em que estivermos.
O nosso futuro colectivo não está assegurado por mais ninguém para além de nós próprios. Não sejamos ingénuos, não confiemos essa matéria a Deus. O mesmo “mecanismo de acreditar” que pode ter sido o segredo da nossa sobrevivência em tempos recuados da nossa evolução, pode virar-se contra nós. Pensemos no que fazem, já fizeram e podem ainda fazer os fundamentalistas e radicais de todas as religiões… tempos perigosos os que vivemos.
Esta dificuldade traduziu-se numa impossibilidade de entendimento, espécie de caminho que não leva a lado nenhum e que sempre acontecerá quando um crente e um não crente se procuram explicar reciprocamente.
José Saramago fez acusações graves à Bíblia e a Deus, tendo mesmo reconhecido ter exagerado quando utilizou certas expressões, por exemplo: o tal “Manual de Maus Costumes”, mas desculpou-se com os seus direitos de autor.
O reconhecimento deste exagero parece-me ter sido feito mais por uma questão de amabilidade para com o interlocutor e as pessoas religiosas que o estavam a ouvir do que por não pensar exactamente o que disse.
Ele leu o que estava escrito no Antigo Testamento e a conclusão a que chegou foi de que aquilo não passava de um manual de maus costumes e por isso o disse e reafirmará todas as vezes que lhe vier a propósito e justificará apoiando-se em muitas passagens da Bíblia.
A grande questão que se levanta nestas apreciações tão graves sobre a Bíblia, é que este livro, para judeus e cristãos, é um texto sagrado porque eles acreditam no Deus daquela religião enquanto que, para José Saramago e para todos os ateus, é simplesmente um livro, não propriamente igual a qualquer outro, mas sem a componente do sagrado.
Por esta razão, a discussão que ambos travam, não é de carácter literário ou interpretativo, qualquer coisa de académico que acontece com todas os livros, mas antes algo que toca fundo na essência espiritual de cada pessoa que professa aquelas religiões e incomoda também os outros, os não crentes, porque, afinal, todos fomos criados neste “caldo” religioso e sabemos que a sociedade é constituída maioritariamente por pessoas religiosas ou que se consideram como tal, incluindo nela os nossos amigos e familiares.
As pessoas, não se sabe quem, que ao longo de mil anos foram escrevendo o que está escrito na Bíblia, (não vamos pensar que tenha sido Deus a fazê-lo directamente), tinham a noção de que o estavam a fazer para um livro sagrado e que essas palavras iriam ser lidas como se tivessem sido ditadas por Deus, muitas delas, mesmo, diálogos onde intervém o próprio Deus como personagem.
Isto significava que aquela mensagem escrita não iria apenas influenciar os leitores mas formar consciências, mentalidades, transmitir orientações com a força de ordens, criar unidade de um povo à volta de um Deus, essa entidade suprema, transcendente, que se escapa ao entendimento porque ultrapassava os homens em absoluto, no poder, deixando-lhes apenas a escapatória da obediência cega, sem discussão.
Terrível a responsabilidade desses homens que ao longo dos séculos foram escrevendo a Bíblia de tal forma que tiveram de a repartir com os teólogos, os que interpretam essa escrita.
Por aquilo que ouvimos ontem ao teólogo Carreira das Neves, o Antigo Testamento é, todo ele, escrito por metáforas e parábolas, de uma forma simbólica, o que significa uma solução de grande inteligência porque permite que os teólogos o actualizem e expliquem aos crentes de acordo com os tempos que se estão vivendo e com as orientações que em cada momento a Igreja ache mais conveniente.
Por esta razão, a Bíblia será cada vez mais um texto metafórico, para interpretar e não para ler porque o seu significado literal, com o avanço dos conhecimentos científicos e o triunfo da razão, será cada vez menos compreensivo.
Assim, a importância e o papel dos teólogos é cada vez mais importante para a Igreja porque ela pretende – é uma pretensão - complementar a fé dos seus seguidores com explicações plausíveis e racionais da mensagem do seu Deus.
Contra isto se insurge José Saramago para quem o livro não tem nada de sagrado e pergunta: “mas com que direito os senhores me vêm dizer o que está escrito na Bíblia?”
E aqui está a polémica que, ao fim e ao cabo, não é polémica nenhuma:
- O padre Carreira das Neves lê a Bíblia com os olhos de um crente, nem preciso acrescentar de padre e teólogo.
- José Saramago faz a mesma leitura com os olhos de um não crente mesmo que, como afirmou, se esforçasse para o ser.
O ponto de partida está na crença de um Deus que em seis dias, ou lá o tempo que fosse, fez o Universo, antes não fez nada e depois, daí para cá, nada voltou a fazer, versão da Bíblia que, para Saramago, não crente, é absurdo e inteligível.
Realmente, a razão e a fé são inconciliáveis. A razão é um instrumento de análise crítica e a fé um dogma ou um conjunto de dogmas que não se sujeitam a essa tal análise crítica e constitui “batotice” Carreira das Neves afirmar que, “se os crentes não conseguem provar que Deus existe, os ateus também não conseguem provar que ele não existe”.
Todos sabemos que o ónus da prova é de quem afirma. Não é legítimo pensar que recai sobre mim a obrigação de provar em tribunal que não sou criminoso.
Fiquemo-nos, portanto, pela questão da fé. No último texto em que me referi a este assunto afirmei que o processo de selecção natural que permitiu a sobrevivência da espécie humana “encarregou-se” de fazer chegar até nós os crentes.
Os que não acreditavam e não seguiam os conselhos dos progenitores foram ficando pelo caminho…e mesmo assim não foi fácil, momentos houve em que chegámos a números no limiar mínimo da sobrevivência da espécie.
Este “jeito” de acreditar ficou-nos gravado no cérebro, é verdade, mas não nos esqueçamos que se chegámos ao que somos hoje devemo-lo à capacidade de usar a nossa razão sem a qual também não teríamos sobrevivido.
Temos de conviver todos, crentes e não crentes, apelando cada vez mais à nossa inteligência, razão e senso comum… seja ele o lado em que estivermos.
O nosso futuro colectivo não está assegurado por mais ninguém para além de nós próprios. Não sejamos ingénuos, não confiemos essa matéria a Deus. O mesmo “mecanismo de acreditar” que pode ter sido o segredo da nossa sobrevivência em tempos recuados da nossa evolução, pode virar-se contra nós. Pensemos no que fazem, já fizeram e podem ainda fazer os fundamentalistas e radicais de todas as religiões… tempos perigosos os que vivemos.
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