quinta-feira, outubro 22, 2009


JOSÈ SARAMAGO
E O LIVRO DE
CAIM






Acabei de ouvir a entrevista de Judite de Sousa, na RTP1, a José Saramago e li as notícias que apareceram nos jornais a propósito do livro sobre Caim e, sobretudo, das declarações que o autor produziu sobre a Bíblia, Antigo Testamento.

Disse Saramago:

- «A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana» e acrescentou:

- «Passou mil anos, dezenas de gerações a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso, insuportável. É uma loucura. O Corão que foi escrito só em trinta anos, é a mesma coisa. Imaginar que o Corão e a Bíblia são de inspiração divina? Francamente. Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos.»

Desculpem-me, mas toda esta polémica na sequência destas afirmações, embora eu a compreenda e até a ache previsível, é inusitada, faz pouco sentido.

Eu sou leitor de José Saramago, por coincidência estava a lê-lo nas minhas férias em Espanha, quando o Prémio Nobel lhe foi atribuído.

Entre outros livros dele, li “ O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que eu “senti” como um texto de grande sensibilidade humana e, muito provavelmente, lerei igualmente o Caim.

Quem tenha passado por este blog sabe que eu, embora tenha nascido no seio de uma família católica, religião que recebi como uma herança e na qual fui educado, frequentando, inclusivamente, colégio de jesuítas onde recebi todos os sacramentos, hoje não sou crente e embora reconheça como uma evidência a importância das religiões não deixo de as responsabilizar por terem sido ao longo da história e continuarem a ser, factores de separação, ódios, guerras e crueldades entre os homens.

Mas aprendi, e devo isso a Richard Dawkins, que a crença ou a fé, como lhe quiserem chamar, está inscrita num determinado espaço do nosso cérebro porque numa determinada fase da nossa evolução, o “acto” de acreditar foi muito importante, talvez mesmo decisivo para a nossa sobrevivência.

Aqui, como em tudo o resto, a selecção natural de Charles Darwin, encarregou-se do resto. Aqueles que na infância não acreditaram e não cumpriram disciplinadamente as recomendações dos progenitores e dos mais velhos do grupo não sobreviveram e foram ficando pelo caminho…sobreviveram os que acreditaram…: que não deviam abeirar-se do rio porque os crocodilos os esperavam escondidos, aproximarem-se dos precipícios porque podiam cair ou não comerem esta ou aquela planta que era venenosa… e por aqui fora.

Inevitavelmente, também acreditaram que se cortassem as goelas a uma cabra iria chover ou a caçada iria correr bem, etc… e, de acreditar em acreditar, muito mais tarde, chegámos às religiões pois o fenómeno da crença era um filão que fatalmente seria aproveitado, tanto mais que o "dispositivo" do acreditar fica-se por aí: não nos diz em quê. Ficámos à sua mercê, entregues à nossa responsabilidade. Em termos
da nova tecnologia, a "natureza" colocou-nos o Hardware tendo ficado por nossa conta o Software.

Mas voltemos ao Caim e ao José Saramago. Sendo a crença uma necessidade do nosso cérebro ela torna-se imprescindível para o nosso equilíbrio mental, sobrevivência mesmo, e tudo o que a ela estiver ligado ou fizer parte dessa crença, assume a qualidade de sagrado que é a melhor forma de defendermos o que é essencial para a nossa vida.

Sagrado, significa: inquestionável, indiscutível, intocável e é isto que é A Bíblia para os cristãos ou o Corão para os seguidores de Maomé.

É indiferente o que lá está escrito ou deixa de estar, a maioria esmagadora dos católicos nunca a leu nem lerá, nem isso é importante. A “letra” a que se refere Saramago, é indiferente.

Por isso, o que acontece entre Saramago e os seus abespinhados críticos, é “uma conversa de surdos e mudos”.

Saramago diz: «… mas o que lá está escrito é isto» e os homens da Igreja respondem: «nós é que sabemos o que lá está escrito porque aquele texto é a “palavra” de Deus e nós é que interpretamos essa “palavra”»

As religiões assentam na fé e a fé consiste em dogmas que estão fora ou para além da razão: acredita-se ou não se acredita: é assim que funciona. Toda a discussão é inútil, leva ao exacerbar das paixões e, neste caso concreto, também à venda de muitos mais livros.

As declarações de José Saramago sobre a Bíblia são conclusões estritas, óbvias, do que lá está relatado e eu que já li essas “passagens” posso confirmá-lo como qualquer outra pessoa que simplesmente saiba ler. No entanto, para mim, A Bíblia, não é coisa sagrada, não tenho que a defender para além do racional e da minha capacidade de entendimento.

As acusações de José Saramago sobre A Bíblia e de outras que não fez por pudor, não acrescentam nem alteram nada para além do que lá está escrito e por isso ele podia não as ter feito. Se estivéssemos no tempo da Inquisição ele não só não as teria dito como nem sequer teria escrito o livro. Ele próprio a firmou que a sua coragem não teria chegado para tanto mas esses riscos já lá vão, passaram à história: agora, o “risco” que corre será o de vender mais livros.

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