segunda-feira, outubro 19, 2009


Lembranças da
Guerra de Angola



Sejamos sinceros, abater o inimigo, os denominados terroristas, excluindo as populações que viviam fugidas no mato depois das matanças de Março de 1961, era um objectivo quase inalcançável para os nossos soldados.

A sua preparação em termos de treino militar para a guerra de guerrilha não existira, o seu recrutamento não satisfizera nenhum critério de selecção pois com excepção dos cegos e coxos toda a gente era apurada para ir para a guerra.

Os motoristas, por exemplo, chegavam a Angola praticamente sem saberem guiar e uma percentagem enorme de feridos e mortos ocorreram em consequência de desastres de viação o que era até referido, com um certo orgulho pelos nossos comandos político/militares, para afirmarem a ineficácia do inimigo.

Especialmente depois das mortes ocorridas na emboscada que vitimou os meus colegas da Companhia 389, duas ou três semanas logo após a nossa chegada, o objectivo não era matar mas apenas não morrer.

Éramos apenas um exército de presença, de ocupação, que pretendia assegurar a defesa das populações, manter abertas as vias de comunicação e permitir, lentamente, o retomar das actividades económicas.

Para se ganhar a guerra, se ela tivesse uma vitória possível que não tinha, seria preciso um outro tipo de militares, profissionais da guerra sob todos os aspectos, homens seleccionados entre voluntários vocacionados e preparados para perseguir e combater os guerrilheiros.

Os responsáveis pela condução da guerra perceberam isto e ainda em 1962 iniciou-se a constituição de uma tropa de elite, os denominados Comandos, a partir de militares que se destacavam pelas suas aptidões e que eram convidados ou se ofereciam para receber um treino especial dado por um antigo sargento da Legião Estrangeira, um italiano de seu nome Dante Vachi, especialista em guerra subversiva com experiência nas guerras da Argélia e Indochina e que foi comandada, até à sua extinção, pelo então Capitão, mais tarde Coronel e hoje General, Jaime Neves.

Que não se pedisse mais aos nossos soldados, provenientes na sua maioria esmagadora, do meio rural sem nenhuma experiência de vida fora das suas aldeias, com as mãos mais habituadas ao cabo das enxadas do que à delicadeza do gatilho das espingardas metralhadoras, num meio hostil e completamente desconhecido.

Recordo um soldado meu, que quando juntamente com outros, mandei apear da viatura e fazer umas rajadas para a esquerda e direita de uma curva da estrada que mais à frente me pareceu suspeita, se pôs a rezar, ajoelhado, em vez de fazer os tiros como lhe tinha mandado. Até ao fim da comissão ficou com a alcunha do “Pai-Nosso”.

Outro, depois de chegar ao aquartelamento, no fim de uma escolta, confessava aos camaradas: …“tive tanto medo que não me cabia no cu a cabeça de um alfinete”. Também este ficou com a alcunha do “Cabeça de Alfinete”.

Consolava-nos a ideia de que o tempo jogava a nosso favor e que cada dia que passava era menos um que faltava para o regresso e, como costumávamos dizer para nos animarmos: o que era preciso “era acordar todos os dias com os dedos dos pés a mexer e a ramela ao canto do olho”.

Tivemos sorte, na zona do Úcua onde fomos colocados, em finais de 1962, não havia minas anti-carro nas picadas, nem anti-pessoais, o que aliviava enormemente a pressão psicológica do risco da morte e de ferimentos graves em consequência de um engenho destruidor que escondido nos trilhos das picadas era impossível de detectar.

Os nossos colegas, que mais a norte tinham de conviver com essa terrível realidade, punham sacos de areia no chão das viaturas, por baixo dos seus pés, para amortecer o impacto das explosões.

Sobraram para nós as emboscadas que felizmente, durante os nove meses que ainda ali estivemos, não se repetiram.

Inevitavelmente, quarenta e seis anos depois tudo se vai desvanecendo na memória: ficaram flashes que resistem teimosamente e uns senhores velhotes, muitos carecas e barrigudos, com os quais todos os anos almoço para lembrar que continuamos vivos.

“Para Angola, Depressa e em Força”: - Tinha sido esta a ordem de Salazar que no contexto de então, depois da mortandade cruel e generalizada de populações indefesas no norte de Angola, da responsabilidade da UPA (União dos Povos de Angola), se compreendia.

A continuação dessa guerra durante todos os anos que se seguiram até ao 25 de Abril é que demonstra uma teimosia política da responsabilidade de pessoas, ou de uma pequena e cada vez mais reduzida elite que dessa forma pensavam defender melhor os seus interesses.

Na realidade, a obstinação na guerra, traduziu-se em consequências trágicas para toda uma geração de portugueses e angolanos que foram os grandes sacrificados deste período histórico que, a partir de agora, começa finalmente a ser enterrado.

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