quinta-feira, outubro 15, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 260





Se espera que eu lhe ajude na empreitada, fique sabendo que sou contra. Não conte comigo.

Ascânio tenta argumentar, repete frases do Magnífico Doutor e de Rosalvo Lucena mas Tieta corta-lhe a palavra:

- Não perca seu latim, não vai me convencer. Gosto muito de você mas gosto ainda mais de Agreste, adoro Mangue Seco.

- Minha maneira de amar Mangue Seco é outra, dona Antonieta – na voz o acento empresarial de Rosalvo Lucena – sou um administrador, tenho responsabilidades públicas…

- Pois fique com as suas responsabilidades, eu fico com a minha opinião. E guarde seus quadros e discursos para Agreste. Hoje é um dia muito especial para mim, não quero saber de brigas e discussões, quero muita alegria. Vá passear com Leonora, ela ainda não foi ao Saco, mal conhece Mangue Seco. Mostre tudo a ela, aproveite antes que seja tarde, sobra pouco tempo, Ascânio – Pensa em Ricardo, murmura: - Muito pouco…

Estabelece-se novamente uma trégua, a derradeira. Os rostos não se desanuviam, no entanto. Tieta conserva na retina a paisagem de aço e concreto traçada no desenho: os edifícios das fábricas, as chaminés, as residências de técnicos e administradores, as casas dos operários e mais longe, nas proximidades dos cômoros, a sumptuosa vivenda, reservada sem dúvida, para os directores da indústria. O cimento armado substituíra os coqueiros, o mangue desaparecera sob o asfalto da estrada vinda de Agreste. As choupanas tinham sumido, a povoação deixara de existir, em lugar de canoas, embarcações carregadas com tonéis. Extintos, os caranguejos e os pescadores.

Junto com a controversa visão do futuro, Ascânio enrola a euforia e a suficiência com que iniciara a pregação matinal sobre os méritos da Brastânio. Ao falar do pouco tempo a ser aproveitado, dona Antonieta se refere à instalação da fábrica, com as inevitáveis mudanças na paisagem de Mangue Seco, ou à iminência do regresso dela e da enteada a São Paulo? Os postos da Hidrelétrica já alcançaram terras do município, dona Antonieta tem razão, é curto o tempo para tanta coisa a fazer.

Tieta se ocupa com o café quando ouve o ruído do motor do barco de Pirica. Larga o hóspede sozinho, sai correndo para a praia, ao encontro de Ricardo:

- Leonora está acordando, ela cuida de você.

Do barco descem dona Carmosina e Elisa, Ricardo não veio. Tieta recebe e lê o recado do “sobrinho que a adora e tem saudades”, amassa o pedaço de papel e atira-o para a areia. Esforça-se por acompanhar o trasbordante alvoroço de dona Carmosina entregue à minuciosa narrativa do sensacional acontecimento da véspera, a festa do aniversário de Peto na pensão de Zuleika, a iniciação. Noutra oportunidade, a notícia teria motivo para longa conversa de comadres, entremeada de riso e de malícia. Merece apenas um comentário quase desinteressado:

- Descabaçaram o moleque? Já não era sem tempo. Vivia brechando as coxas da gente.

Pouco lhe interessa o sucedido com Peto. Importa-lhe, sim, o outro menino, o que ela iniciara nos cômoros, o seu, àquela hora na sacristia da Matriz anotando rol de sotainas e imagens. Por que não largou o inventário nas mãos do padre e das beatas? Como pode estar ausente no dia da festa da inauguração do Curral, da casa que os dois haviam construído, amassando juntos o barro das paredes? Não sabe que a cama nova, com o colchão de lã de barriguda, espera também para ser inaugurada? Tieta nunca imaginara pudesse vir a ter ciúmes de templos e altares, cerimónias e orações, coisa mais ridícula! Dona Carmosina a
arrasta para a Toca da Sogra, em busca do Comandante
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