segunda-feira, novembro 02, 2009


TIETA DO


AGRESTE

EPISÓDIO nº 275



CAPÍTULO DE EVENTOS MEMORÀVEIS DURANTE OS QUAIS ASCÂNIO TRINDADE PERDEU A ELOQUÊNCIA E A CARAMBOLA – PRIMEIRA PARTE: O CASO DO DISCURSO


Entre a passagem do doutor Hélio Colombo por Agreste e a publicação da notícia em gazeta da capital, por duas vezes Ascânio Trindade esteve a ponto de perder a cabeça – na primeira perdeu o fio do discurso, na segunda a carambola.

O caso do discurso sucedeu no comício improvisado para saudar a chegada às ruas do burgo dos postes da Hidrelétrica. Quando o engenheiro chefe desceu do jipe e subiu a escada da Prefeitura, Ascânio Trindade, na sala de despachos, sozinho, busca digerir recentes e embaraçosas atitudes, tomadas à sua revelia, impostas por terceiros sem que sobre elas lhe houvessem permitido opinar ou discutir. Satisfatórias, entretanto.

Ignorando-lhe os escrúpulos, pisoteando os preconceitos locais, o atraso sertanejo, Leonora o transportara cada noite ao paraíso, ou seja à Bacia de Catarina. Solucionando intrincado problema, o famoso advogado ordenou-lhe desapropriar as terras do coqueiral, apenas assuma o cargo de prefeito. Acatara as duas soluções, ambas o comprazem.

Persiste, todavia, dentro dele um laivo de descontentamento como se, ao concordar com tais iniciativas e delas participar, cometesse acto reprovável. Analisando-as, nelas não encontra nada de sujo ou desonesto. Por que então o medo e a dúvida? Exclusivamente por lhe faltar estofo de líder. Enredado em melindres, em relutâncias e susceptibilidades provincianas, mentalidade estreita, assusta-se e vacila quando a conjuntura exige firmeza e audácia. Mestre Colombo e Leonora representam a mentalidade aberta e avançada das grandes cidades. Surpreendente Leonora, tão frágil e tão disposta, tão discreta e tão atrevida!

A voz do engenheiro interrompe suas matutações:

- Vim lhe convidar para assistir à colocação do primeiro poste na cidade. Gostaria também de chamar a tal ricaça, a que manda no governo. Assim terei o prazer de a conhecê-la.

Empolgado com a notícia, Ascânio salta de cadeira, enfia o paletó.

- Ela está em Mangue Seco, o senhor vai conhecê-la no dia da festa. Já podemos marcar a data?

- Digamos, o primeiro domingo daqui a quinze dias.

Ascânio faz as contas, dezassete dias exactamente. Ao fixar a data para a grande festividade, o engenheiro determina o dia do regresso a São Paulo das Cantarelli, a viúva e a herdeira. Ascânio estremece: o curto tempo tão falado e repetido deixa de ser expressão vaga, transformando-se em prazo fatal. Daí a dezoito dias, na marinete de Jairo, partirá de Agreste a mais pura e bela das mulheres.

Célere, espalha-se a notícia, movimentando a cidade. Nas mãos festeiras de Vavá Muriçoca, o sino da Matriz badala alvíssaras. Padre Mariano surge no átrio. Por obra e graça de devota paroquiana, generosa ovelha do rebanho do Senhor, comendadora papalina, meritíssima, foi instalada nova rede eléctrica no templo, cuja fachada, recoberta de lâmpadas coloridas, aguarda a luz de Paulo Afonso, Padre Mariano acelera o passo para alcançar Ascânio e o engenheiro chefe.

Manejando pás e picaretas, operários cavam o buraco onde se erguerá o primeiro poste, no antigo caminho da lama, futura rua Dona Antonieta Esteves Cantarelli. Dos becos e ruas, desemboca gente. Os últimos cépticos rendem-se à evidência: mais duas semanas e Agreste estará consumindo força e luz da Hidrelétrica de São Francisco. Energia capaz de mover indústrias, luz forte e brilhante, vinte e quatro horas por dia, não a fosca e débil iluminação do motor, limitada a três horas quando não há pane. A luz de Tieta. O nome da benfeitora passa de boca em boca, em louvor e admiração. Todos sentem orgulho da riqueza e importância, do prestígio e poderio da conterrânea, patrona da cidade e do município, filha pródiga e predilecta. A ela, apenas a ela, deve-se aquele milagre – verdade proclamada pelo próprio engenheiro-chefe.

Inacreditável milagre, define ele, de cima do caixão de querosene. Vendo dezenas de cidadãos comprimidos em torno aos engenheiros e aos operários, comentando, prontos para o aplauso. Ascânio manda o moleque Sabino em busca de um caixote: momento tão solene da vida de Agreste não pode transcorrer em branca nuvem. Improvisa tribuna e comício e, para iniciá-lo, convida o engenheiro-chefe, “comandante invicto dessa épica batalha do progresso a quem manifestamos a nossa gratidão”. Falto de dotes oratórios, o engenheiro reduz-se a quatro rápidas frases. Parabeniza o povo da região mas recusa agradecimentos, ele e sua equipe cumpriram apenas ordens da Companhia, ordens que de início lhe pareceram absurdas pois a extensão dos fios eléctricos a Agreste fora um autêntico inacreditável milagre. Deviam agradecer exclusivamente à poderosa personagem que o proporcionara e a quem ainda não tivera o prazer de conhecer. Ao descer, é apresentado a alguns familiares da poderosa personagem: a irmã Perpétua, o sobrinho Peto, a enteada Leonora, a quem despe com os olhos gulosos e competentes. Material de primeiríssima, papa fina.

Leonora acha que Ascânio merece uma parcela dos aplausos e da gratidão pois se batera com desesperada pertinácia, sofrendo, inclusivé humilhações, para a obtenção daquela vitória. Nada conseguira, é verdade, mas nem por isso seu esforço deve ser esquecido.

Aliás não lhe regateiam aplausos quando ele sucede ao engenheiro, sobre o caixote. Sobretudo ao se referir à actuação de dona Antonieta Esteves Cantarelli, a quem o povo de Agreste será eternamente agradecido. Ficasse por aí e com certeza compartilharia da gratidão expressa pelos presentes aos responsáveis por fios, postes, lâmpadas e iluminação. O erro de Ascânio foi querer aproveitar a ocasião para fazer propaganda da Brastânio. Num gesto imperativo apontou o chão, perguntando: a quem se deve o asfalto sobre o qual pisamos, cobrindo para sempre a lama secular da entrada da cidade? Quem enviou máquinas, técnicos, operários? A Brastânio, cuja presença no município significa a redenção de Agreste – disse, repetindo o chavão da entrevista. Palmas e bravos, de mistura com apupos e apartes, divididas as opiniões.

- Abaixo a poluição! – Brada dona Carmosina.

Ascânio não dá atenção, prossegue entusiasta e eloquente, mas logo
anónima voz em falsete, evidentemente disfarçada na confusão do ajuntamento.

- Cala a boca, Pleibói matuto! Tu é vendido!

Ascânio engasga no meio da frase, sem conseguir localizar o canalha – se for homem apareça e repita – perde a eloquência e a segurança, alinhava o discurso. Ao descer do caixote estrugem aplausos e vivas: dirigidos ao poste que os operários acabam de colocar de pé, maravilha do século. Altíssimo, de concreto, bifurcando-se em braços para as lâmpadas, porreta.

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