TIETA DO AGRESTE
Ainda embatucada, Tieta força o riso:
- Se fardou para isso? Ou vai me levar presa?
O militar não a acompanha no riso e na pilhéria:
- Não brinque com coisa séria, Tieta. A única maneira de prevenir a catástrofe, de salvar Agreste, é impedir a eleição de Ascânio.
- Impedir? De que jeito?
- Elegendo outro candidato.
- Qual? – repentina suspeita altera-lhe a voz – Não venha me dizer que você e a maluca da Carmô me escolheram…
- Essa seria a solução ideal se você não vivesse em São Paulo – O Comandante retira o boné, limpa o suor, coça a cabeça – Você me conhece, sabe que não sou homem de mentiras. Deixei a marinha e voltei para Agreste porque desejo viver em paz o resto da minha vida, tranquila, ao lado da minha mulher, neste pedaço de paraíso. Você sabe que não tenho outras ambições, sou feliz assim – Era como se tivesse despido a farda, novamente simples e cordial, despretensioso.
- E quem não sabe? Também eu, certos dias em São Paulo, tenho vontade de largar tudo e vir de vez para Agreste. Por isso comprei casa e terreno. Um dia vou fazer o mesmo que você.
- Com uma fábrica de dióxido de titânio funcionando aqui, nem vale a pena pensar nisso, nosso paraíso vai virar uma lata de lixo, como aconteceu na Itália. Enfrentamos uma situação excepcional, Tieta – Formaliza-se, a voz composta, o gesto firme, o olhar beligerante – Tão excepcional que me dispus a aceitar minha candidatura, proposta por um grupo de amigos. De patriotas. Para que essa candidatura deixe ser apenas um gesto, para que tenha possibilidade de vitória, é necessário que você se disponha a tomar a frente da campanha. Todos são de opinião que o povo apoiará seu candidato. Tudo depende de você. Vim lhe convocar, em nome do futuro de Agreste, para lutar por uma causa sagrada.
Tieta escuta, os olhos postos na face crispada do amigo. Pobre Comandante a comandar uma batalha perdida. Fanático pelo clima de Agreste, pela beleza selvagem de Mangue Seco, largara a carreira, despira a farda para ali esperar a morte desfrutando por muitos e longos anos vida sadia e tranquila. Tudo isso terminou, Comandante. Não adianta retirar a farda do guarda-roupa, colocar a medalha na túnica.
- Você acredita que nós, de Agreste, podemos influir para que a fábrica não se instale aqui? Eu não creio. Sei como essas coisas se passam. São decididas à revelia do Zé-povinho, não pedem a opinião da gente. Você vai sair dos seus cómodos, vai…
- Vou cumprir o meu dever. É nossa obrigação, a minha, a sua, dos que sabem o que significa essa indústria. Mesmo se tivesse de ficar brigando sozinho… Eu lhe disse, se lembra, que farei tudo para evitar a poluição de Agreste.
- Me lembro…
Ricardo intervém, a voz em borbotões:
- Me desculpe, tia mas o Comandante tem razão. Frei Timóteo falou que a gente deve agir sem perguntar pelo resultado. Pedro também pensa assim.
Tieta revê a figura magra do grade, a fisionomia franca e simpática do engenheiro, volta a ouvir a branda e fervorosa voz do religioso, o acento vibrante e apaixonado do ateu, um e outro referindo-se a crime e obrigação, perturbando-lhe o “dolce far niente”, fazendo-a sentir-se a última das ociosas, das inúteis, das imprestáveis. Agora aparece o Comandante, fardado, solene, exigindo o cumprimento do dever. Para se viver bem, repetia Felipe, homem sábio, é necessário antes de tudo abolir a consciência. A merda é que nem sempre se consegue.
Ferve a chaleira, Tieta passa o café, coloca xícaras na mesa. Ali Ascânio Trindade estendera o colorido desenho de Rufo, a deslumbrante visão do futuro. Escurecem novamente os olhos de Tieta recordando o asfalto derramado, soterrando o mangue, as vivendas erguidas sobre os escombros da povoação.
Choupanas, caranguejos, pescadores, sonhos adolescentes, dias de paixão, enterrados na podridão do dióxido de titânio. Nenhuma pastora de cabras voltará a subir os cômoros, nunca mais.
EPISÓDIO Nº 279
Ainda embatucada, Tieta força o riso:
- Se fardou para isso? Ou vai me levar presa?
O militar não a acompanha no riso e na pilhéria:
- Não brinque com coisa séria, Tieta. A única maneira de prevenir a catástrofe, de salvar Agreste, é impedir a eleição de Ascânio.
- Impedir? De que jeito?
- Elegendo outro candidato.
- Qual? – repentina suspeita altera-lhe a voz – Não venha me dizer que você e a maluca da Carmô me escolheram…
- Essa seria a solução ideal se você não vivesse em São Paulo – O Comandante retira o boné, limpa o suor, coça a cabeça – Você me conhece, sabe que não sou homem de mentiras. Deixei a marinha e voltei para Agreste porque desejo viver em paz o resto da minha vida, tranquila, ao lado da minha mulher, neste pedaço de paraíso. Você sabe que não tenho outras ambições, sou feliz assim – Era como se tivesse despido a farda, novamente simples e cordial, despretensioso.
- E quem não sabe? Também eu, certos dias em São Paulo, tenho vontade de largar tudo e vir de vez para Agreste. Por isso comprei casa e terreno. Um dia vou fazer o mesmo que você.
- Com uma fábrica de dióxido de titânio funcionando aqui, nem vale a pena pensar nisso, nosso paraíso vai virar uma lata de lixo, como aconteceu na Itália. Enfrentamos uma situação excepcional, Tieta – Formaliza-se, a voz composta, o gesto firme, o olhar beligerante – Tão excepcional que me dispus a aceitar minha candidatura, proposta por um grupo de amigos. De patriotas. Para que essa candidatura deixe ser apenas um gesto, para que tenha possibilidade de vitória, é necessário que você se disponha a tomar a frente da campanha. Todos são de opinião que o povo apoiará seu candidato. Tudo depende de você. Vim lhe convocar, em nome do futuro de Agreste, para lutar por uma causa sagrada.
Tieta escuta, os olhos postos na face crispada do amigo. Pobre Comandante a comandar uma batalha perdida. Fanático pelo clima de Agreste, pela beleza selvagem de Mangue Seco, largara a carreira, despira a farda para ali esperar a morte desfrutando por muitos e longos anos vida sadia e tranquila. Tudo isso terminou, Comandante. Não adianta retirar a farda do guarda-roupa, colocar a medalha na túnica.
- Você acredita que nós, de Agreste, podemos influir para que a fábrica não se instale aqui? Eu não creio. Sei como essas coisas se passam. São decididas à revelia do Zé-povinho, não pedem a opinião da gente. Você vai sair dos seus cómodos, vai…
- Vou cumprir o meu dever. É nossa obrigação, a minha, a sua, dos que sabem o que significa essa indústria. Mesmo se tivesse de ficar brigando sozinho… Eu lhe disse, se lembra, que farei tudo para evitar a poluição de Agreste.
- Me lembro…
Ricardo intervém, a voz em borbotões:
- Me desculpe, tia mas o Comandante tem razão. Frei Timóteo falou que a gente deve agir sem perguntar pelo resultado. Pedro também pensa assim.
Tieta revê a figura magra do grade, a fisionomia franca e simpática do engenheiro, volta a ouvir a branda e fervorosa voz do religioso, o acento vibrante e apaixonado do ateu, um e outro referindo-se a crime e obrigação, perturbando-lhe o “dolce far niente”, fazendo-a sentir-se a última das ociosas, das inúteis, das imprestáveis. Agora aparece o Comandante, fardado, solene, exigindo o cumprimento do dever. Para se viver bem, repetia Felipe, homem sábio, é necessário antes de tudo abolir a consciência. A merda é que nem sempre se consegue.
Ferve a chaleira, Tieta passa o café, coloca xícaras na mesa. Ali Ascânio Trindade estendera o colorido desenho de Rufo, a deslumbrante visão do futuro. Escurecem novamente os olhos de Tieta recordando o asfalto derramado, soterrando o mangue, as vivendas erguidas sobre os escombros da povoação.
Choupanas, caranguejos, pescadores, sonhos adolescentes, dias de paixão, enterrados na podridão do dióxido de titânio. Nenhuma pastora de cabras voltará a subir os cômoros, nunca mais.
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