segunda-feira, novembro 16, 2009


TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 280



DE COMO PERPÉTUA, MÃE DEVOTADA, ENGOLE SAPOS E FAZ DAS TRIPAS CORAÇÃO



O inesperado regresso de Tieta, levada pelos deveres cívicos a interromper a paradisíaca temporada na praia – acontece cada coisa nesse mundo que até Deus duvida – foi saudado com vivo entusiasmo e farta bajulação por Perpétua, já disposta a ir a Mangue Seco para uma conversa decisiva com a irmã sobre o futuro dos filhos, Cardo e Peto, na qual concretizasse amadurecidos planos, colocando os pontos nos ii, o preto no branco. De preferência no Cartório, com firma reconhecida.

Acolhe o filho e a irmã num exagero de efusão, estranho à sua natureza: - Deus te abençoe, meu filho, e te mantenha no bom caminho para continuar a merecer a protecção da tua tia – Ah! quem a viu e quem a vê: antes seca e distante, agora abrindo os braços para Tieta, calorosa, quase servil – Graças a Deus que você voltou, mana. Não aguentava de saudade. Peto também, ele lhe adora, vive com seu nome na boca, pergunte a Leonora.

- É sim. Peto é um amor… - confirma Leonora, ainda surpresa com a reviravolta nos planos de Tieta.

- Temos muito que conversar antes de sua viagem, mana. Nem quero pensar nesse dia. Vou sentir demais a falta de vocês… - Faz das tripas coração, estende a adulação à enteada da irmã: - A tua também, Nora.

- Não lembre coisas tristes dona Perpétua.

Ao ouvir o lamento da despudorada, Perpétua em novo esforço, balança a cabeça num gesto de lástima, a voz sibilando afectuosa repreensão:

- Imagine, Tieta, que esta boba está caídinha por Ascânio... Bonita e rica como ela é, podendo escolher em São Paulo o noivo que quiser, perde tempo namorando um pé rapado daqui. Não digo que seja mau rapaz mas não tem onde cair morto. Não é partido para ela, já avisei mil vezes.

Vibrante de interesse pela felicidade de Leonora. Das tripas coração – Perpétua abafa o desejo de bradar contra a falta de vergonha da sirigaita, a chegar fora de horas todas as noites, afogueada, o vestido amarfanhado, vinda sabe Deus de onde. Ora de onde: da descaração na beira do rio, noite após noite; todo o mundo comenta. Perpétua engole indignação e nojo, o futuro dos filhos exige elogios, sorrisos, silêncio, ela paga o preço. Na hora de prestação de contas, o Senhor Todo – Poderoso, com quem estabeleceu um trato, lançará a seu crédito os sapos engolidos, as muitas vezes que fez das tripas coração. Como agora, ao receber o filho e a irmã, vindos de Mangue Seco, queimados do sol, cheirando a maresia, respirando saúde e satisfação.

- Feliz da moça que casar com Ascânio, Dona Perpétua. Ele é um homem maravilhoso.

- Um pobretão, te esconjuro.

- Ainda bem, Perpétua, que te encontro nessa disposição, pois estou pensando em prolongar um pouco mais a minha demora…Ia no dia seguinte ao da festa, talvez fique mais uns dias…

Tieta vai para a alcova, arrumar seus teréns, Leonora a acompanha. Perpétua volta-se para o filho, antes de agir deve conversar com ele, saber se a tia falara novamente em levá-lo para São Paulo, se lhe fizera promessas, quais e quando, se insinuara por acaso adoptá-lo. Por que, já estando de data marcada para viajar, decidira demorar-se? Mas Ricardo apressado, deposita o embrulho com roupas e livros, ganha a rua, a pretexto de pedir a bênção ao padre e se apresentar ao Comandante.

- Ao Comandante? – espanta-se Perpétua.

- Vou trabalhar para o Comandante o resto das férias.

- Que história é essa?

- A tia depois explica, Mãe. Agora não posso, não tenho tempo.

Escapa porta fora, sem pedir licença. Perpétua, atónita, reconhece o tom da voz, o olhar, o riso, o atrevimento; de há muito lhe são familiares. Tom de voz, olhar, riso, atrevimento – era ver Tieta meninota, da idade de Ricardo, alheia às ordens do pai, à violência, aos gritos, aos castigos, à taça e ao bordão. Rebelde, dona da sua vontade.

- Valha-me Deus! – geme Perpétua, a mão no bolso da sai negra, tocando as contas do terço.

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