TIETA DO
AGRESTE
EPISÓDIO Nº 291
DO DESVELO CÍVICO E DA JUSTIÇA DIVINA
No sábado, a cidade amanheceu em plena campanha eleitoral. Para Prefeito vote contra a poluição votando no comandante Dário de Queluz, recomendam faixas em número de quatro, colocadas em pontos estratégicos, nos logradores de maior circulação. Uma, bem em frente da Prefeitura. Tabuletas convidam a população a comparecer em massa no dia seguinte, domingo, por volta das cinco da tarde, após a matiné e antes da bênção, ao grande comício de lançamento da candidatura do comandante Dário de Queluz. O candidato usará da palavra e o poeta De Matos Barbosa declamará os Poemas da Maldição.
Faixas e placares confeccionados no quintal do bangalô do Comandante pela eficiente equipa, cujo desvelo cívico a bela Carol saudara prazenteira e esperançosa. Em casa de dona Milú, dona Carmosina e Aminthas, dois crânios, redigiram uma espécie de manifesto ao povo, expondo as razões da candidatura do Comandante. Impresso em Esplanada, em papel amarelo, o volante se destina a farta distribuição em Agreste, no sábado e no Domingo. Dias de agitação subterrânea, sábado de ocorrências sensacionais.
Bendita agitação! Nas idas e vindas, Ricardo, dito Pau-Para-Toda-Obra se desenvolve. Do outro lado do quintal, desfalece na hora da sesta a oprimida manceba. Por entre as trepadeiras trocam juras e promessas, traçam planos; o senhor dos escravos passará o fim-de-semana em Mangue Seco com a esposa e os netos. Na torre da igreja, ao entardecer, Cinira fita a paisagem tranquila do burgo, um pé no barricão, o outro levantado (para facilitar). Por detrás da mangueira, Maria Imaculada, infalível às nove da noite em ponto, quando a luz se apaga abrindo os caminhos das barrancas do rio à circulação romântica dos namorados. Depressa, depressa, bem, que o tempo é curto. Em casa Tieta espera impaciente. Quanto a dona Edna, aguarda vez, afinal ninguém é de ferro, nem sequer um seminarista adolescente, ávido de acção, quase fanático.
Na sexta-feira, o silêncio do motor não interrompeu os afazeres dos devotados partidários do Comandante. Nem Ricardo correu ao encontro de Maria Imaculada. Posta a par com antecedência, a menina concordara em sacrificar por uma vez o medido momento de prazer à boa causa. Fidélio, Seixas, Ricardo, Peto, Sabino, atravessam a noite colocando faixas e tabuletas sob o comando de Aminthas e a fiscalização de Osnar. Infenso a qualquer esforço físico – reservo meu físico para os embates do amor – Osnar dita ordens, caga regras. O Comandante superintende os trabalhos, o rosto grave, preocupado com a elaboração do discurso para o comício, tremenda responsabilidade. Bafo de Bode concedera de início o suporte da sua presença aos militantes do meio ambiente. Mas, tendo conseguido subtrair dos cuidados de Osnar uma garrafa de pinga quase cheia, sumira.
Terminam todos na pensão de Zuleika, onde os aguarda uma peixada comemorativa, encomendada pelo benemérito Osnar. Todos, menos o Comandante, por incorruptível e Ricardo por seminarista. Não se apressa o jovem, todavia, a recolher-se. Coincidindo a vigília cívica com a partida de Modesto Pires para o regaço da família, na praia, acontece uma porta apenas encostada na solidão de agreste, à espera de valente justiceiro.
Nas ocorrências daqueles dias agitados, prevaleceu o desentendimento, divididas as opiniões, envenenadas. Mas quando certos factos vieram à tona e os chifres de Modesto Pires tornaram-se públicos e aceites, houve acordo unânime, não se ouviu acusação e crítica aos autores da façanha.
Autores, sim, o que não retira de Ricardo a glória de ter sido o primeiro a vencer as barreiras perversamente intransponíveis do respeito aos poderosos, do medo da vingança dos prepotentes – e a fazer justiça. Justiça divina, segundo o povo, cansado de esperar o auspicioso evento desde que, há aproximadamente seis anos, o dono do curtume importara dos confins de Sergipe as graças muitas de Carol, com elas enriquecendo o património de Agreste. Limitando, no entanto, o valor do gesto com a prática de mesquinha e egoísta exclusividade.
Bafo de Bode, ao retornar na esperança de mais cachaça, encontra a praça vazia. Tomando pelos becos ermos distingue, no primeiro alvor da madrugada, a robusta sombra do bom samaritano na acto de transpor a porta da escravatura para proclamar a abolição. Inimigo das tiranias e da propriedade privada, Bafo de Bode exclama para o escasso auditório de dois vira-latas e uma cadela:
- Seja feita justiça de Deus! Mete ferro, padrequinha!
AGRESTE
EPISÓDIO Nº 291
DO DESVELO CÍVICO E DA JUSTIÇA DIVINA
No sábado, a cidade amanheceu em plena campanha eleitoral. Para Prefeito vote contra a poluição votando no comandante Dário de Queluz, recomendam faixas em número de quatro, colocadas em pontos estratégicos, nos logradores de maior circulação. Uma, bem em frente da Prefeitura. Tabuletas convidam a população a comparecer em massa no dia seguinte, domingo, por volta das cinco da tarde, após a matiné e antes da bênção, ao grande comício de lançamento da candidatura do comandante Dário de Queluz. O candidato usará da palavra e o poeta De Matos Barbosa declamará os Poemas da Maldição.
Faixas e placares confeccionados no quintal do bangalô do Comandante pela eficiente equipa, cujo desvelo cívico a bela Carol saudara prazenteira e esperançosa. Em casa de dona Milú, dona Carmosina e Aminthas, dois crânios, redigiram uma espécie de manifesto ao povo, expondo as razões da candidatura do Comandante. Impresso em Esplanada, em papel amarelo, o volante se destina a farta distribuição em Agreste, no sábado e no Domingo. Dias de agitação subterrânea, sábado de ocorrências sensacionais.
Bendita agitação! Nas idas e vindas, Ricardo, dito Pau-Para-Toda-Obra se desenvolve. Do outro lado do quintal, desfalece na hora da sesta a oprimida manceba. Por entre as trepadeiras trocam juras e promessas, traçam planos; o senhor dos escravos passará o fim-de-semana em Mangue Seco com a esposa e os netos. Na torre da igreja, ao entardecer, Cinira fita a paisagem tranquila do burgo, um pé no barricão, o outro levantado (para facilitar). Por detrás da mangueira, Maria Imaculada, infalível às nove da noite em ponto, quando a luz se apaga abrindo os caminhos das barrancas do rio à circulação romântica dos namorados. Depressa, depressa, bem, que o tempo é curto. Em casa Tieta espera impaciente. Quanto a dona Edna, aguarda vez, afinal ninguém é de ferro, nem sequer um seminarista adolescente, ávido de acção, quase fanático.
Na sexta-feira, o silêncio do motor não interrompeu os afazeres dos devotados partidários do Comandante. Nem Ricardo correu ao encontro de Maria Imaculada. Posta a par com antecedência, a menina concordara em sacrificar por uma vez o medido momento de prazer à boa causa. Fidélio, Seixas, Ricardo, Peto, Sabino, atravessam a noite colocando faixas e tabuletas sob o comando de Aminthas e a fiscalização de Osnar. Infenso a qualquer esforço físico – reservo meu físico para os embates do amor – Osnar dita ordens, caga regras. O Comandante superintende os trabalhos, o rosto grave, preocupado com a elaboração do discurso para o comício, tremenda responsabilidade. Bafo de Bode concedera de início o suporte da sua presença aos militantes do meio ambiente. Mas, tendo conseguido subtrair dos cuidados de Osnar uma garrafa de pinga quase cheia, sumira.
Terminam todos na pensão de Zuleika, onde os aguarda uma peixada comemorativa, encomendada pelo benemérito Osnar. Todos, menos o Comandante, por incorruptível e Ricardo por seminarista. Não se apressa o jovem, todavia, a recolher-se. Coincidindo a vigília cívica com a partida de Modesto Pires para o regaço da família, na praia, acontece uma porta apenas encostada na solidão de agreste, à espera de valente justiceiro.
Nas ocorrências daqueles dias agitados, prevaleceu o desentendimento, divididas as opiniões, envenenadas. Mas quando certos factos vieram à tona e os chifres de Modesto Pires tornaram-se públicos e aceites, houve acordo unânime, não se ouviu acusação e crítica aos autores da façanha.
Autores, sim, o que não retira de Ricardo a glória de ter sido o primeiro a vencer as barreiras perversamente intransponíveis do respeito aos poderosos, do medo da vingança dos prepotentes – e a fazer justiça. Justiça divina, segundo o povo, cansado de esperar o auspicioso evento desde que, há aproximadamente seis anos, o dono do curtume importara dos confins de Sergipe as graças muitas de Carol, com elas enriquecendo o património de Agreste. Limitando, no entanto, o valor do gesto com a prática de mesquinha e egoísta exclusividade.
Bafo de Bode, ao retornar na esperança de mais cachaça, encontra a praça vazia. Tomando pelos becos ermos distingue, no primeiro alvor da madrugada, a robusta sombra do bom samaritano na acto de transpor a porta da escravatura para proclamar a abolição. Inimigo das tiranias e da propriedade privada, Bafo de Bode exclama para o escasso auditório de dois vira-latas e uma cadela:
- Seja feita justiça de Deus! Mete ferro, padrequinha!
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