quarta-feira, dezembro 23, 2009



DONA FLOR




E SEUS DOIS




MARIDOS


EPISÓDIO Nº 1


DA MORTE DE VADINHO, PRIMEIRO MARIDO DE DONA FLOR, DO VELÓRIO E DO ENTERRO DE SEU CORPO



Vadinho, o primeiro marido de dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo 2 de Julho, não longe da sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça onde o uísque correra farto à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.

O bloco conduzia uma pequena e afinada orquestra de violões e flautas; ao cavaquinho, Carlinhos de Mascarenhas, magricela celebrado nos castelos, ah!, um cavaquinho divino.

Vestiam-se os rapazes de ciganos e as moças de camponesas húngaras ou romenas; jamais, porém, húngara, ou romena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas, cabrochas na flor da idade e da faceirice.

Vadinho, o mais animado de todos, ao ver o bloco despontar na esquina e ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho sublime, adiantou-se rápido, postou-se ante a romena carregada de cor, uma grandona, monumental como uma igreja – e era a Igreja de São Francisco, pois se cobria com um desparrame de lantejoula dourada – anunciou:

- Lá vou eu, minha russa do tororó…

O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrinhos e missangas, festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as flautas e os violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, excepto trabalhar. Rodopiava em meio ao bloco, sapateava em frente à mulata, avançava para ela em floreios e umbigadas, quando de súbito, soltou uma espécie de ronco surdo, vacilou as pernas, adornou de um lado, rolou no chão, botando uma baba amarela pela boca onde o esgar da morte não conseguia apagar de todo o satisfeito sorriso do folião definitivo que ele fora.

Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do fazendeiro; não seriam aquelas quatro ou cinco doses capazes de possuir bebedouro da classe de Vadinho; porém toda a cachaça acumulada desde a véspera ao meio-dia quando oficialmente inauguraram o Carnaval no Bar Triunfo, na Praça Municipal, subindo toda ela de uma vez e derrubando-o adormecido.

Mas a mulata grandona não se deixou enganar: enfermeira de profissão, estava acostumada com a morte, frequentava-a diariamente no hospital. Não, porém, tão íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de pinicar-lhe o olho, de sambar com ela.

Curvou-se sobre Vadinho, colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio no ventre e na espinha:

- Tá morto, meu Deus!

Outros tocaram também o corpo do moço, tomaram-lhe o pulso, suspenderam-lhe a cabeça de melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do coração. Nada obtiveram, era sem jeito. Vadinho desertara do Carnaval da Bahia.

Site Meter